Quem regula o regulador?

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O Brasil conta com 200 milhões de técnicos de futebol, principalmente diante de grande expectativas, como em Copas do Mundo. Em tempos de redes sociais essa atitude se expande, transformando-nos em “Tudólogos”, especialistas com palpites e soluções para tudo (impossibilidade, considerando que por definição um especialista não é um Polímata).

Essa reação se torna ainda mais evidente diante dos eventos climáticos extremos que insistem em afetar infraestruturas e redes de eletricidade – motor da vida moderna. Mas o perigo aumenta quando estes técnicos resolvem opinar sobre matéria regulatória, principalmente no calor de uma crise como a engendrada pela atual situação da qualidade de serviço em São Paulo.

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Os desafios enfrentados pelo regulador em tempos de transição energética justa podem trazer luz (sic) a outras áreas que têm pela frente a tarefa de desenvolver capacidade institucional em regulação. Aos “especialistas” interessados em aprofundar conhecimentos, vale empregar método para diagnosticar se há, o que há e como enfrentar problemas na qualidade da regulação de eletricidade. Esse é o tema deste artigo.

O diagnóstico da qualidade de sistemas regulatórios de infraestrutura é tema de livro publicado em 2006, que conta com Ashley Brown como um dos autores. A abordagem aborda as duas grandes dimensões da regulação – conteúdo e forma. O conteúdo versa sobre as principais variáveis definidas no processo regulatório, como preços, tarifas, requisitos de qualidade técnica, compromissos de investimento e metas de universalização. Uma segunda dimensão é a qualidade do processo de tomada de decisão, que dá lugar ao conceito de governança regulatória.

À semelhança de outras dimensões de governança, um bom processo regulatório repercute positivamente em um bom ambiente de negócios. Contribui assim para a redução dos custos de capital, como atesta a literatura dedicada ao tema. O tema ganha destaque com o recente prêmio Nobel em ciências econômicas conferido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, por sua contribuição em demonstrar a relação entre a qualidade das instituições e prosperidade.

Voltando ao livro, Brown e coautores exploram como avaliar a regulação em infraestrutura por meio de comparação (Benchmarking) entre diferentes sistemas. Um diagnóstico cuidadoso é fundamental para desenhar reformas que gerem resultados que sejam economicamente desejáveis e factíveis do ponto de vista político.

A insatisfação generalizada com a performance de um sistema regulatório – como no caso atual – não implica consenso sobre os problemas. Para enfrentar o tema, os autores propõem método para medir dimensões da qualidade da regulação, que incluem: independência, accountability, autonomia decisória e financeira, instrumentos e recursos a disposição do regulador, integridade, entre outros.

Merece destaque o princípio de clareza na atribuição de funções, que trata de como se articulam as relações entre o regulador, governo, legislador e Judiciário. De modo geral, a empresa regulada interage com muitos reguladores: regulador setorial; órgão de defesa da concorrência; regulador ambiental; regulador prudencial (CVM), quando negocia títulos ou ações no mercado, dentre outros. Cada um deve atuar dentro de suas competências; caso contrário, o ambiente de negócios resta prejudicado por ruídos que distorcem os sinais – como os de preços –, comprometendo as condições para a boa operação e expansão do sistema.

Um funcionamento efetivo da um sistema regulatório depende do arcabouço em que se insere em sentido amplo – estrutura legal, poderes e competências, direitos de propriedade bem definidos e transacionáveis. Para ilustrar, não dá para o prefeito dizer que vai determinar enterramento completo de redes ou revogar contrato de concessão quando há problema na provisão de serviços de eletricidade em face de um evento extremo, por pior que seja. O devido processo legal precisa ser percorrido.

Os sistemas regulatórios devem ser submetidos a avaliações sistemáticas periodicamente, em processos conduzidos de modo “independente, objetivo e completamente informado”, para que se possa melhor compreender os problemas e desenhar boas soluções. A construção de consensos torna-se mais complexa quando consideramos que o quadro regulatório não é estático; ao contrário, sua dinâmica é afetada por mudanças nas condições sociais, econômicas e técnicas.

Ser previsível e ao mesmo tempo dinâmico é um enorme desafio a ser equacionado. Em artigo recente, Michael Politt e coautores argumentam que o atingimento dos objetivos de neutralidade de carbono demanda regulação caracterizada por processo de aprendizado com três atributos: deve ser adaptativa, dinâmica e responsiva a mudanças nas condições subjacentes.

A metodologia proposta já foi fonte de inspiração para vários estudos no Brasil – por exemplo, Paulo Correa e coautores (2006, 2019). Também análises comparativas do Banco Mundial (Luis Andres e coautores, 2008) e OCDE atestaram a boa qualidade da regulação de eletricidade da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

A despeito das avaliações positivas, vigorosas tempestades perfeitas no horizonte têm abalado as estruturas do setor e da regulação no Brasil. Para além dos extremos climáticos, a descentralização, a falta de uma reforma setorial há cerca de duas décadas e a iminente definição das condições para prorrogação dos contratos de concessão de distribuição são pilares dessa fragilidade. O calor das discussões sobre as causas e efeitos da recente tempestade em São Paulo torna mais difícil promover avanços necessários no quadro regulatório.

O grande desafio para formuladores de políticas e reguladores é lidar com temas que assumem uma conotação política, como o enfrentamento de crises, preservando a integridade das instituições regulatórias. Revisões e avaliações regulares, que aumentem a transparência e a credibilidade das agências reguladoras, são essenciais para alcançar esse objetivo. Fica aqui a reflexão de alguns dos milhões de técnicos… em regulação de eletricidade.