Quem está conciliando e mediando as negociações sobre a Constituição?

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Em abstrato, a possibilidade conciliação no âmbito do controle de constitucionalidade das leis desafia um dos seguintes princípios: de um lado, o da supremacia da Constituição (afinal, se a lei ou ato normativo é inconstitucional, isso não poderia ser transacionado); ou, do outro lado, o democrático (na medida em que declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo que seguiu, formal e materialmente, as condições previstas para a sua elaboração equivaleria a ignorar a vontade majoritária, um dos elementos institucionais caracterizadores do Estado de Direito).

Outras críticas teóricas vão no sentido de que a admissibilidade de meios autocompositivos como conciliação e mediação equivaleria ao STF dispor de sua própria competência para processar, julgar e decidir as ações da jurisdição constitucional ou, então, que colocaria em xeque o princípio da presunção de constitucionalidade das leis.

Entretanto, como vem sendo argumentado aqui, a análise dos institutos não pode ser somente em tese; é preciso examiná-los na prática. Por vezes, certas preocupações teóricas não se sustentam ante a realidade, porque simplesmente não correspondem aos usos que vêm sendo dados aos temas em questão. Esse é justamente o caso da solução consensual no STF. Já há estudo empírico concluindo que – ao menos até o momento da referida pesquisa – a Corte não vem submetendo à conciliação a apreciação da constitucionalidade em si, mas sim de questões acessórias ou que digam respeito à aplicação concreta das normas constitucionais.

Destaque-se, nesse sentido, que ainda que na teoria não se possa transacionar sobre a validade de uma norma constitucional, há aspectos parciais de sua aplicação ou de sua forma de execução que, por autocomposição, podem levar a uma maior eficácia da própria Constituição.

Além disso, rememora-se que o STF atua não só na interpretação direta das normas constitucionais, mas também em processos sujeitos à sua jurisdição originária, em que atos normativos infraconstitucionais são também diretamente interpretados e aplicados (como os conflitos federativos, por exemplo), sobre os quais as margens de autocomposição são naturalmente mais largas.

Como a conciliação e a mediação no STF parecem ter vindo para ficar, já não fazem sentido considerações que neguem totalmente seu cabimento. O próprio CPC (art. 3º, §§ 2º e 3º) colocou, sob o mesmo cânon da inafastabilidade da jurisdição, o princípio da solução consensual dos conflitos e a determinação de que seus métodos devem ser estimulados sempre que possível. Mais adiante, o art. 165 do CPC determinou que os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.

Então, mais vale refletir sobre os limites, as condições e as sugestões para aperfeiçoar o fluxo da conciliação e da mediação de processos no STF, a fim de que se tornem mais claros os determinantes que fazem o processo ser enviado para a conciliação/mediação na Corte e como ocorre a escolha dos conciliadores/mediadores ou dos demais participantes das audiências correspondentes.

Por exemplo, a ex-ministra Ellen Gracie atuou como mediadora no ARE 1.266.096 (Tema 1205 da repercussão geral), em que se discutia a exclusividade do uso da marca iPhone no Brasil. Esse foi o primeiro processo submetido ao então CMC (Centro de Meciação e Conciliação do STF, instituído pela Resolução 697/202). Entretanto, tal tentativa de autocomposição não teve êxito e o julgamento seguiu. O próprio relator pediu destaque do Plenário Virtual.

Depois, já não houve mais atuações de ilustres ou de sumidades nessa atividade de autocomposição na Corte. Daí a questão: quem mais está atuando como mediador e conciliador no STF?

Considerando que o elemento quem conduz a negociação é um ponto importante nesse debate, e que não dá para esperar que sejam sempre os próprios ministros do STF relatores que conduzam essa atividade, a coluna de hoje se dedica a examinar quem foram os conciliadores dos 45 acordos homologados até o momento em que este texto está sendo escrito (30 de junho), de acordo com o Painel dos Acordos Cíveis disponibilizados pelo próprio STF.

Antes, porém, convém expor brevemente a cadeia de normas que institucionalizou a atividade de mediação e conciliação no STF e fixou quem pode ser conciliador ou mediador.

O primeiro ato normativo nesse sentido foi a Resolução 697, de 6 de agosto de 2020, que criou o já mencionado CMC. Já nessa primeira normativa se estabeleceu no art. 7º que poderão atuar como mediadores e conciliadores, de forma voluntária e não remunerada, ministros aposentados, magistrados, membros do Ministério Público, advogados e defensores públicos aposentados, servidores do Poder Judiciário e advogados (esses dois últimos, presume-se, ainda em atividade).

Para isso, é preciso firmar termo de ausência de conflito de interesse e compromisso de bem desenvolver as atividades. Ainda de acordo com a resolução, as atividades de mediação ou conciliação não constituirão vínculo empregatício e não acarretarão despesas ao STF. O exercício das atribuições de mediador e conciliador será transitório e considerado relevante função pública (§§ 1º a 3º do referido art. 7º). Inclusive, não custa lembrar que, pelo CPC, art. 149, o mediador e o conciliador são auxiliares da justiça, como terceiros imparciais que conduzem, por caminhos e técnicas diferentes, o processo de autocomposição.

A atuação de mediadores e conciliadores se dá sob a orientação do Coordenador (um juiz auxiliar da Presidência do STF) e demais servidores envolvidos com as atividades do CMC, objetivando sempre o aprimoramento da tutela jurisdicional voluntária e pacífica (§ 4º). As atividades estão submetidas, ainda, à cláusula de confidencialidade, devendo guardar sigilo a respeito do que for dito, exibido ou debatido na sessão, de modo a não permitir que tais ocorrências sejam consideradas para outros fins que não os da tentativa de conciliação (art. 8º).

Posteriormente, a Resolução 775, de 31 de maio de 2022, instituiu o Centro de Cooperação Judiciária do STF (CCJ), integrado por juízes auxiliares e servidores com atuação nas áreas administrativa e jurisdicional, responsável pelos atos de cooperação praticados pelo STF (arts. 5º e 9º). Na sequência, veio a Resolução 790, de 22 de dezembro de 2022, que criou o Centro de Soluções Alternativas de Litígios do STF (CESAL), nele incorporando o CMC, o CCJ e criando uma terceira unidade, o Centro de Coordenação e Apoio às Demandas Estruturais e Litígios Complexos (CADEC).

Por fim, conforme o Ato Regulamentar 27, de 11 de dezembro de 2023, o CMC passou a se chamar Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (NUSOL), integrando a Assessoria de Apoio à Jurisdição (AAJ).

Como já indicado, a partir do painel que figura na página do NUSOL, vê-se que hoje existem 45 acordos homologados. Entretanto, nem todos os acordos foram celebrados no âmbito do próprio STF: 37,7% das homologações foram de acordos extrajudiciais (ACOs 648, 669, 683, 701, 718, 2178, 3421, ADPF 165, AR 2873, Pet 8029, MSs 37454, 35398, AREs 1347550, 1458169, 1441516, 1421884, 1407111); 4,4% foram de acordos celebrados no âmbito da primeira instância (ADPF 568, ARE 1400942); e outros 4,4% tecnicamente não representam um acordo ou conciliação, mas mera concordância com os cálculos apresentados pelo credor para a liquidação da sentença condenatória (ACOs 3511 e 3205).

Então, como se vê, parece haver uma certa imprecisão no Painel dos Acordos Cíveis do STF e não significa que as ações que dele constam em “acordos homologados” tenham envolvido uma conciliação ou mediação na própria Corte. Em vários dos processos listados (mais precisamente, em 9), não há informações sobre quem atuou como conciliador ou mediador (REs 1434932, 1401247, Rcls 64807, 64803, 64800, ACOs 3511, 3457, 3205, 2981).

A partir do painel, e das informações públicas das ações, só é possível atestar que 37,7% dos acordos homologados advém de conciliações conduzidas no âmbito do STF.

Dos 45 acordos homologados, 10 são oriundos do gabinete do ministro Cristiano Zanin, o “campeão” em termos de taxa de sucesso. Por coincidência, sua juíza instrutora, Caroline Santos Lima, também vem sendo a que atuou na maior parte dos acordos homologados, somando ainda sua atuação no gabinete do ex-ministro Ricardo Lewandowski. No total, atuou em pelo menos 6 processos (Rcl 64943, ARE 1291514, ADPF 829, ADIs 7487, 7433, ACO 3520).

Depois, vêm os juízes auxiliares Diego Viegas Veras, Abhner Yousif Mota Arabi e Paulo Cesar Batista dos Santos, como os que atuaram com maior número de acordos homologados.

Há, ainda, notícias de outros casos nos quais houve iniciativa de autocomposição e que não integram essa base de dados, em que os próprios ministros, em seus gabinetes e sem apoio direto do NUSOL, conduzem o processo de negociação. Nesses casos, os ministros é quem conduzem as audiências ou designam seus juízes auxiliares para tanto. Veja-se o recente exemplo da ACO 2059, em que inauguradas tratativas conciliatórias em processo que discute a dívida pública do Estado do Rio Grande do Sul com a União.

Com isso, nessa análise descritiva, percebe-se uma abertura ainda pequena para os demais perfis de profissionais liberados para a atuar como conciliadores e mediadores desde o art. 7º da Resolução 697, de 6 de agosto de 2020, que criou o CMC. Em todo caso, buscou-se trazer maiores informações que podem trazer reflexões para o aprimoramento da atuação autocompositiva do STF, traço já marcante de sua atuação jurisdicional.

Assim, a prática da solução consensual no STF, sem colocar em risco o princípio da supremacia da Constituição, tem revelado a existência de espaço constitucional válido para o desempenho dessa função pela Corte, com resultados que, por vezes, incrementam a efetividade das normas constitucionais e a prestação jurisdicional.