Quem é o dono do IBS?

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Muito se tem falado sobre as virtudes do princípio do destino no contexto da reforma da tributação sobre o consumo.

Nos padrões internacionais de Imposto sobre Valor Agregado (segundo diretivas da OCDE e UE), a tributação baseada no destino é considerada preferencial por sua aptidão de promover a neutralidade, nota fundamental de um bom tributo sobre o consumo. Se o imposto incide no destino da operação, a fixação do estabelecimento passa a ser uma escolha orientada não por critério de conveniência tributária, mas de conveniência empresarial, como deve ser.

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Não por acaso, a reforma promovida pela EC 132/2023, alinhando-se ao modelo internacional de IVA, abraçou o critério do destino ao tempo em que alçou a neutralidade como princípio expresso do novo IVA brasileiro.

Mas, para compreender o alcance da escolha constitucional é preciso situar esse novo IVA e o seu critério do destino no quadro do nosso modelo federativo.

Não custa lembrar que, ao inaugurar um perfil brasileiro de tributação sobre o consumo, o Congresso Nacional adotou o IVA dual, composto por um IVA federal (intitulado Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS, com a reunião do IPI, PIS e Cofins) e um IVA subnacional (denominado Imposto Sobre Bens e Serviços – IBS, agregando o ISS e o ICMS).

E, no que interessa a este artigo, alterou o paradigma do critério espacial da regra-matriz de incidência tributária da tributação do consumo até então existente (predominantemente baseada na origem) para o destino, aspecto naturalmente relevante para o IBS, de competência compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios.

O destino na tributação de consumo, seja acolhido como princípio ou como regra, está capitulado no art. 156-A, §1º, VII, da CF e é o local da ocorrência da operação, conforme pormenorizado pelos critérios previstos no art. 11 c/c art. 15, parágrafo único, da LC 214/2025. Revela-se indispensável para a definição da alíquota do IBS aplicável à operação (soma das alíquotas do estado e do município de destino ou do Distrito Federal, se for o local de destino), para a distribuição do produto da arrecadação do imposto pelo Comitê Gestor (art. 156-B da CF) e para o equilíbrio financeiro entre estados, Distrito Federal e municípios. Este último aspecto provocou, inclusive, uma sofisticada e larga regra de transição constante nos arts. 130 e 131 do ADCT.

Fato é que, ao deslocar a tributação do local do estabelecimento fornecedor para o local onde ocorre o consumo, a reforma tributária fez mais do que promover a neutralidade. A eleição do critério do destino para o IVA dual, e para o IBS em especial, na fisionomia da federação brasileira, realiza, a um só tempo, diversos valores constitucionais relevantes.

De um lado, privilegia o princípio federativo e a isonomia entre os entes federados, proporcionando uma distribuição mais igualitária de receitas tributárias e evitando concentração de poder econômico nas regiões produtoras. Virtude não menos relevante do critério do destino, subproduto da neutralidade, é o de tornar inócua qualquer tentativa de burlar os mecanismos constitucionais que impedem a concessão de incentivo tributário irregular pelos entes federativos, fragilizando as armas da guerra fiscal.

De outro lado, promove os valores da cidadania e democracia, aproximando o cidadão eleitor das decisões políticas de sua localidade, na medida em que ele passa a ser, de forma mais direta, quem financia os serviços públicos ali prestados.[1]

Mas, se a mudança do modelo de tributação do consumo, adotando o princípio do destino, apresenta uma série de virtudes, também traz algumas complexidades relevantes.

A reconfiguração na distribuição de receitas beneficiará locais com grande mercado consumidor em detrimento do lugar de produção do bem ou serviço, naturalmente enfraquecendo políticas de incentivo ao desenvolvimento econômico. Ainda, pode ocorrer um movimento de concentração de unidades produtivas em estados/municípios com melhor infraestrutura. Certo é que as relações jurídicas tributárias também tendem a mudar de eixo, deslocando-se da sede do fornecedor para o lugar do consumo/destino.

Outro elemento sensível está relacionado às implicações deste novo modelo nas relações jurídicas tributárias, e por conseguinte, processuais. O IVA dual instaura uma realidade jurídica totalmente nova no direito tributário: estamos diante de um tributo normativamente único e operacionalmente dual[2], porém tríplice em sua titularidade.

Essa dificuldade é mais evidente em matéria de IBS, em que a competência é compartilhada entre estados e municípios. São diversas as dificuldades que deverão ser enfrentadas pela doutrina e jurisprudência: estamos diante de uma relação jurídica obrigacional com dois sujeitos ativos (com frações de seu direito de crédito), ou de duas relações jurídicas independentes, cada qual titularizada por um ente federado? E quem é o sujeito do IBS quando estamos tratando de operações de meio de cadeia?

Aqui, o critério do destino nos convida a buscar novas formas de pensar as antigas categorias do direito tributário. Sujeito ativo da obrigação tributária, na doutrina clássica, é o titular o direito subjetivo de exigir a prestação pecuniária. E, na ausência de estipulação diversa por lei, a pessoa a ocupar a posição de sujeito ativo é o titular da competência para instituir o tributo.

Neste contexto, numa operação intermediária (meio de cadeia ou B2B), observa-se que o credor do IBS (estado ou município de destino da operação B2B) pode não ser o titular da receita correspondente, pois esta apenas será devida à unidade federativa (estado e município) onde ocorrer o consumo (operação B2C).

Desta complexidade de direito material deriva outra de natureza processual: quem deve figurar como parte numa ação exacional ou antiexacional envolvendo este tipo de operação? O município ou estado de destino da operação intermediária tem interesse em participar de um processo cujo objeto, ao cabo, envolve uma relação titularizada por outro ente (o ente de destino da operação, “dono” da receita do IBS)?

Isso sem contar muitas outras dificuldades envolvendo o contencioso  administrativo e judicial, em mais de uma esfera federativa. Intuitivo que haverá impacto na atuação do Poder Judiciário, inclusive com aptidão para atrair a competência do Supremo Tribunal Federal, diante dos conflitos federativos tributários que devem surgir (art. 102, I, f da CF), e, naturalmente, do Superior Tribunal de Justiça, como inserido pela EC 132/2023 no art. 105, I, j, da CF.

O debate sobre alíquotas em operação business to business – b2b (situação com geração de direito a crédito do imposto) atrai a competência judicial da origem ou do destino? Discussões sobre o split payment devem ocorrer na sede do fornecedor interessado ou no destino? Haverá litisconsórcio necessário ou cumulação facultativa de ações nos casos de CBS e IBS ou IBS-E e IBS-M?

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Diante de tantas celeumas, surgem propostas para equacionar as implicações da reforma tributária no contencioso judicial, como a criação de um tribunal federal; a constituição de colegiados virtuais mistos, com Juízes Federais e de Direito, atuando em cooperação judiciária; a adoção de Ação Declaratória de Legalidade (ADL) e da Ação Declaratória de Ilegalidade (ADIL) de competência do Superior Tribunal de Justiça; ou mesmo a ampliação do uso do IRDR em sede de recursos extraordinário e especial.

Se, por um lado, é certo que o princípio do destino promove a neutralidade da tributação e evita a vetusta guerra fiscal, de outro giro desencadeia dificuldades para equacionar os debates judiciais e federativos dele decorrentes, ficando pendente a tarefa de harmonizar o contencioso judicial aparentemente descentralizado, para alcançar a necessária segurança jurídica e a pretendida simplificação do sistema tributário nacional.


[1] Sobre o tema, confira-se CASTELLO, Melissa. Democracia a partir da reforma tributária. Jota. Dez/24. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/advogadas-publicas-em-debate/democracia-a-partir-da-reforma-tributaria

[2] GARCIA, A. C. A.; ABOUD, A. REFLEXÕES SOBRE O CONTENCIOSO JUDICIAL DO IBS E DA CBS. Revista de Direito Tributário da APET, [S. l.], n. 51, p. 169–199, 2025. Disponível em: https://revistas.apet.org.br/index.php/rdta/article/view/713. Acesso em: 8 out. 2025.