Quando o STF acerta: a decretação de perda do mandato de Carla Zambelli

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Ninguém está acima da lei. Nem ministros do STF e nem tampouco deputados e senadores, ainda que representantes do povo e da soberania popular. Esse é o pressuposto constitucional e legal que deve informar a análise da decisão do ministro Alexandre de Moraes que declarou a perda do mandato da deputada federal Carla Zambelli, determinando à Mesa da Câmara dos Deputados a imediata posse do suplente.

Do ponto de vista jurídico-constitucional, a decisão é correta. Não porque se concorde ou discorde politicamente da parlamentar envolvida, mas porque, em determinadas hipóteses de condenação criminal definitiva, o Parlamento não dispõe de discricionariedade para decidir se há ou não perda do mandato. Nesses casos, cabe-lhe apenas declarar um efeito jurídico que já decorre diretamente da Constituição.

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Dois regimes constitucionais de perda de mandato

A controvérsia só se esclarece quando se compreende que a Constituição de 1988 não adotou um modelo único de perda de mandato parlamentar. Ao contrário, o artigo 55 estabelece dois regimes distintos, cada qual com fundamentos, finalidades e competências próprias.

O primeiro regime, previsto no art. 55, §3º, refere-se às hipóteses em que a perda do mandato decorre automaticamente de um fato jurídico previamente definido, como a condenação criminal transitada em julgado com pena incompatível com o exercício do cargo. Nessas situações, não há espaço para juízo político do Parlamento. A competência da Câmara ou do Senado é estritamente administrativa e vinculada: declarar a vacância e adotar as providências formais decorrentes, como dar posse ao suplente, por exemplo.

O segundo regime, disciplinado pelo art. 55, §2º, é de natureza distinta. Aqui, a Constituição exige expressamente um juízo político-institucional do Parlamento, exercido por maioria absoluta, assegurada ampla defesa. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de quebra de decoro parlamentar ou em hipóteses de condenação criminal que não produzem, por si sós, a incompatibilidade automática com o mandato, como penas em regime aberto ou semiaberto.

Essa distinção não é meramente técnica. Ela expressa uma arquitetura deliberada de freios e contrapesos. Em alguns casos, a Constituição confiou ao Parlamento o poder de decidir politicamente sobre a permanência de seus membros. Em outros, retirou-lhe essa margem decisória, justamente para evitar que a lógica corporativa ou circunstancial neutralize efeitos jurídicos impostos pela própria Constituição.

O caso Zambelli e a ausência de discricionariedade parlamentar

No caso de Carla Zambelli, o STF entendeu, e não se trata de inovação jurisprudencial, que a condenação criminal transitada em julgado, com pena incompatível com o exercício do mandato parlamentar, produz efeito automático de perda do cargo. Nessa moldura constitucional, a atuação da Câmara dos Deputados não é deliberativa, mas declaratória. E nem poderia ser diferente.

A tentativa da Câmara de submeter o tema a votação política, “salvando” o mandato de Zambelli, não representa o exercício legítimo de uma competência constitucional, mas sim a subversão do regime jurídico aplicável ao caso. Ao agir assim, a Câmara não atua como contrapeso institucional, mas como instância de resistência a um efeito constitucionalmente imposto. É preciso ser claro: a decisão da Câmara não foi um exercício de freio ao STF, foi uma violação das regras da Constituição. Acertou o STF e errou a Câmara dos Deputados.

Foi exatamente esse descompasso que levou o ministro Alexandre de Moraes a afirmar que caberia à Mesa da Câmara “tão somente declarar a perda do mandato”, por meio de ato administrativo vinculado. Ao fazê-lo, o STF não invadiu a esfera do Legislativo, mas reafirmou os limites constitucionais de sua atuação.

O precedente do caso Natan Donadon

Esse entendimento encontra respaldo em um precedente emblemático: o caso Natan Donadon. Em 2013, o então deputado federal foi condenado criminalmente com trânsito em julgado e pena em regime fechado. À época, a Câmara tentou manter o mandato, rejeitando a perda por votação em plenário.

O STF reagiu de forma clara: definiu que, diante da condenação definitiva e da incompatibilidade objetiva com o exercício do mandato, não cabia à Câmara deliberar politicamente sobre a perda, mas apenas reconhecê-la formalmente. A corte afirmou, de modo inequívoco, que o §3º do art. 55 prevalecia sobre o §2º naquele contexto específico.

O caso Donadon tornou-se um marco jurisprudencial exatamente por delimitar, com precisão, os contornos entre decisão política legítima e ato administrativo vinculado, evitando que o Parlamento se transformasse em instância revisora de condenações criminais definitivas.

Freios, contrapesos e responsabilidade institucional

A leitura correta do art. 55 da Constituição mostra que os freios e contrapesos não funcionam como escudos de impunidade, mas como mecanismos de equilíbrio institucional. Em certos momentos, o Parlamento exerce controle político relevante. Em outros, submete-se aos efeitos jurídicos definidos pelo Judiciário, como ocorre em qualquer Estado de Direito.

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Reconhecer isso não enfraquece a democracia representativa. Ao contrário, preserva sua integridade, ao impedir que mandatos eletivos se convertam em espaços de imunidade penal disfarçada.

Por essa razão, quando corretamente aplicado, o controle judicial não é abuso, mas fidelidade constitucional. No caso Carla Zambelli, o Supremo não substituiu a vontade do Parlamento por sua própria. Apenas afirmou que, naquele ponto específico, a Constituição já havia decidido. O Supremo acertou e é preciso reconhecer os bons e nítidos fundamentos de sua decisão. A Câmara errou e está longe de nos dar uma resposta satisfatória sobre freios, contrapesos e blindagens.