Em janeiro de 2023, publiquei o que agora chamo de Parte 1 do texto “Quando o Antitruste e o Direito do Trabalho voltam a se encontrar”[1] e, neste momento, retorno com a continuação das cenas dos próximos capítulos conforme prometido.
Como explicitado no texto do ano passado, a Federal Trade Commission (FTC, ou o Cade norte-americano) havia proposto uma nova regulação federal que baniria por completo a utilização de cláusulas de non-compete nos contratos de trabalho firmados nos Estados Unidos.
Com o intuito de rememorar sobre o que se trata tal cláusula, tem-se que:
“Em suma, a cláusula de non-compete é uma cláusula contratual presente nos contratos de trabalho que tipicamente impede um trabalhador de trabalhar para um concorrente do empregador, ou de começar um novo negócio naquele mesmo mercado, com certas delimitações geográficas e temporais após o fim da relação de trabalho – por exemplo, um engenheiro de software de uma Big Tech, ou até mesmo empregado de uma rede de fastfood, ficaria impedido de trabalhar para uma empresa concorrente dentro dos EUA no prazo de 3 anos após o fim da relação de trabalho. Cláusulas de non-compete são comuns em contratos de transpasse e em contratos de M&A – por exemplo, nessa perspectiva empresarial, o Código Civil estabelece uma regra geral de non-compete de 5 anos em seu art. 1.147. Contudo, percebe-se ser cada dia mais usual, ao menos nos EUA, a utilização dessa cláusula em contratos de trabalho, seja em empregos de maior ou menor valor agregado”.[2]
Naquele momento, a autoridade antitruste norte-americana iniciava o processo de proposta de regulação e de consulta pública sobre a nova regra. Tal procedimento está acordo com o Direito Administrativo norte-americano, o qual impõe determinados procedimentos pelos quais as agências reguladoras têm que observar para emanar regulações federais, o denominado rule-making process (o procedimento para a criação e publicação de novas regulações estão dispostas no 5 U.S. Code § 553)[3]. Após receber mais de 26 mil comentários no prazo de 90 dias do período da consulta pública, a FTC chegou em sua formulação final.
No dia 23 de abril de 2024, o plenário da FTC, que é composto por 5 membros, sendo composto, atualmente, por três conselheiros (commissioners) apontados pelo Partido Democrata (a chairwoman Lina Khan, a commissioner Rebeca Slaughter e o commissioner Alvaro Bedoya) e dois conselheiros recém empossados apontados pelo Partido Republicano (a coommissioner Melissa Holyoak e o coommissioner Andrew Ferguson), aprovou a nova regulação[4] pela votação de 3 a 2 (Democratas de um lado e Republicanos de outro) – importante apontar essa relação entre conselheiros e os partidos norte-americanos, pois, a Section 1 do FTC Act[5] claramente dispõe que a comissão será composta por 5 conselheiros e não mais do que 3 conselheiros serão apontados pelo mesmo partido político, criando essa correlação forte entre partido e conselheiro, a qual não é vista no Cade e no Direito Antitruste brasileiro.
No mesmo dia, a agência apresentou a sua regra final sobre as cláusulas de non-compete em documento de 570 páginas[6]. A regra final, que entrará em vigor num prazo de 120 dias após a sua publicação, será composta pela regra final, que será imposta em novos contratos de trabalho após a entrada em vigor da regra, e a regra de transição, que será devida nos atuais contratos de trabalho em vigor que preveem cláusulas de non-compete.
A regra final a ser impostas nos novos contratos de trabalho é simples: está banido por completo, por regulação federal, cláusulas de non-compete nos contratos de trabalho norte-americanos.
Já a regra de transição para as atuais cláusulas de non-compete existentes é dividida em relação aos “executivos sênior” e “demais trabalhadores”. Para um executivo sênior, definido como aquele que tem um salário bruto anual maior que US$ 151.164 e estão numa posição de tomador de decisões, as cláusulas de non-compete continuarão válidas, porém, em relação aos demais trabalhadores, elas não terão mais validade jurídica.
Ademais, não será necessário realizar nenhuma modificação legal no contrato de trabalho que contenha a cláusula de non-compete para os “demais trabalhadores”, apenas será dever do empregador em avisar o seu empregado que tal cláusula perdeu a validade legal nos Estados Unidos.
Tais regras serão aplicadas a todas as relações de emprego entre empregados e empregadores nos Estados Unidos, com exceção das indústrias de banco, instituições de empréstimos, transportadoras e demais indústrias dispostas na regra 15 US Code § 45 (a)(2), bem como trabalhadores de organizações sem fins lucrativos (nonprofit organization), que são indústrias excepcionadas da atuação da FTC (imunidades antitruste) – tal doutrina de imunidade antitruste não existe no Direito Antitruste brasileiro, pelo qual o Cade detém competência para a análise de toda e qualquer atividade econômica com efeitos no Brasil.
Com a promulgação dessa regulação, a FTC estima que o banimento das cláusulas de non-compete ocasionará um crescimento de número de empresas de 2,7% ao ano (ou 8.500 empresas), aumento salarial na média de US$ 524 para cada trabalhador por ano, redução nos custos de gastos com saúde no valor de US$ 194 bilhões na próxima década e aumento entre 17 a 29 mil de novas patentes por ano nos próximos 10 anos.
Estima-se também que essa nova regra irá afetar 18% dos trabalhadores norte-americanos, isto é, 30 milhões de pessoas[7]. Contudo, a discussão econômica sobre os benefícios e malefícios sobre as cláusulas de non-compete continua sendo inconclusiva pela literatura econômica[8], bem como os efeitos sobre os executivos do alto-escalão e os demais trabalhadores[9].
Os conselheiros republicanos votaram contra a nova regulação com base na discussão, que eu já havia apresentado na Parte 1 deste texto, sobre a FTC ter ou não o poder de criar regulações federais de cunho concorrencial para os mercados, ou seja, ter ou não rulemaking authority em matéria antitruste – realça-se, por exemplo, que o commissioner Ferguson inicia a sua exposição afirmando ser simpatizante e favorável a presente regulação, contudo discorda da forma procedimental adotada.
Tal discussão torna-se importante, pois não se discute o poder adjudicatório administrativo da FTC em julgar os casos concorrenciais nos Estados Unidos, podendo suas decisões serem revistas pelo Poder Judiciário – poder e situação idêntica ao Cade brasileiro, o qual se trata de uma entidade judicante administrativa de competência concorrencial conforme a Lei 12.529/11.
O ponto de discussão está em saber se o Congresso norte-americano deferiu à FTC o poder e autoridade de emanar regras e regulações federais para os mercados em matéria antitruste – no Brasil, tal poder é característico das agências reguladoras e o Cade não dispõe desse poder de edição de regulações.
Conforme comentado no texto do professor de Direito da Universidade de Chicago Randy Picker[10], em um recente caso julgado pela Suprema Corte dos EUA (West Virginia v. EPA), o qual se discutiu o poder da EPA (Environmental Protection Agency, a autoridade federal ambiental norte-americana) em promulgar regulações para o controle de emissão de gases, a Suprema Corte concluiu que a EPA tinha falhado em demonstrar uma “clara autorização do Congresso” (clear congressional authorization) que permitisse que a agência pudesse emanar tais tipos de regulações.
No presente caso da FTC, torna-se ainda mais complicado tal problema jurídico, pois, nos exatos 100 anos da criação da instituição pelo FTC Act de 1914, a autoridade nunca emanou nenhuma regulação de cunho concorrencial – essa sendo a primeira vez na história. Deve-se ressaltar que, diferentemente do sistema jurídico e institucional brasileiro, a FTC detém tanto competência concorrencial quanto competência consumerista. Em matéria consumerista, é comum e rotineiro que a FTC emane normas relacionadas a proteção do consumidor a níveis federais[11], todavia não se tinha essa mesma posição da agência em matéria concorrencial.
Portanto, torna-se provável que a presente regulação seja escrutinada pelo Poder Judiciário (com uma boa probabilidade de chegar até a Suprema Corte norte-americana) com base na discussão jurídica sobre o rulemaking authority da FTC em promulgar regulações em matéria de antitruste. Nesse sentido, a US Chamber of Commerce[12] já anunciou que irá processar a FTC em relação a promulgação dessa regulação, uma vez que a autoridade estaria excedendo a sua autoridade.
Tal nova regulação será capaz de gerar um grande impacto – ou até uma revolução – nas relações de emprego nos EUA, uma vez que afetará diretamente a relação empregatícia de 18% da força de trabalho norte-americana (30 milhões de trabalhadores).
Todavia, inaugura-se agora uma batalha na esfera judicial, transportando-se a inicial discussão administrativa para o campo do Poder Judiciário. Ou seja, ainda que a discussão sobre a regulação do non-compete dentro da FTC, ao menos em teoria, finaliza-se nesse momento, tal discussão ganhará novos realces dentro de um outro ramo do poder. Assim, continuaremos ansiosos pelos capítulos dos próximos episódios, talvez voltando com uma provável Parte 3 da interessantíssima presente discussão que envolve Antitruste, Direito do Trabalho e Direito Administrativo.
[1] Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/quando-o-antitruste-e-o-direito-do-trabalho-voltam-a-se-encontrar-30012023 >.
[2] Id.
[3] Disponível em: < https://www.law.cornell.edu/uscode/text/5/553 >.
[4] É possível ver a sessão a qual se teve a aprovação da nova regulação através do seguinte link: < https://kvgo.com/ftc/Open-Commission-Meeting-April-23-2024 >.
[5] Disponível em: < https://www.ftc.gov/sites/default/files/documents/statutes/federal-trade-commission-act/ftc_act_incorporatingus_safe_web_act.pdf >.
[6] Disponível em: < https://www.ftc.gov/system/files/ftc_gov/pdf/noncompete-rule.pdf >.
[7] Disponível em: < https://www.ftc.gov/legal-library/browse/rules/noncompete-rule >.
[8] Ver o comentário do Global Antitrust Institute na consulta pública da FTC sobre a atual proposta que foi transformada em regulação. Disponível em: < https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4421548 >.
[9] Ver o texto do professor Herbert Hovenkamp. Disponível em: < https://www.theregreview.org/2023/01/16/hovenkamp-noncompetes-and-rule-of-reason/ >.
[10] Disponível em: < https://www.promarket.org/2023/01/11/the-ftcs-non-compete-ban-will-force-questions-over-the-scope-of-its-authority/ >.
[11] Relação de todas as regulações (rules) já criadas pela FTC que, excluindo a regra de ordem antitruste de banimento das cláusulas de non-compete conforme a discussão deste artigo, são de ordem consumerista. Disponível em: < https://www.ftc.gov/legal-library/browse/rules >.
[12] Disponível em: < https://www.law.com/nationallawjournal/2024/04/22/chamber-of-commerce-plans-to-sue-ftc-over-pending-ban-on-noncompete-agreements/?slreturn=20240323150554 >.