Quando compreender mecanismo do preço contribui na apreciação de processos no TCU

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Há exatos 80 anos, o paper “O Uso do Conhecimento na Sociedade”, de Friedrich A. Hayek, publicado na American Economic Review, abordava os sistemas descentralizados de produção e dispersão do conhecimento, em detrimento de planejamentos centralizados.

Entre esses sistemas dispersos, Hayek destacou como o mecanismo de preço promove, sem que ninguém tenha que planejar isso, a transmissão de informação sobre produção e demanda. Em suas palavras, “num sistema em que o conhecimento dos fatos relevantes se encontra disperso por muita gente, os preços podem intervir na coordenação das ações individuais de diferentes pessoas”.

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Prossegue, “[o] todo age como um mercado integrado, não porque qualquer um dos seus membros verifique todo o processo, mas porque cada um dos seus campos de visão limitados coincide o suficiente para que, por meio de muitos intermediários, a informação relevante seja comunicada a todos eles”.

Seguindo essa tradição de pensamento, Thomas Sowell[1] afirma que “preços são mensageiros levando notícias, [cujo] papel primário é providenciar incentivos financeiros que afetam o comportamento no uso de recursos e produtos resultantes”. Para Sowell, “os preços já formavam uma ampla rede mundial de comunicação bem antes do surgimento da internet”.

Ninguém tem o controle sobre toda a cadeia de informação, diluindo o poder de empresas e indivíduos. Galbraith[2] comenta: “Se fosse possível alguém saber com precisão e certeza o que iria acontecer com os salários, as taxas de juros, os preços das mercadorias, o desempenho das diversas empresas e indústrias, e a cotação de títulos e ações, o indivíduo assim agraciado não cederia nem venderia suas informações a ninguém. Pelo contrário, ele as utilizaria em benefício próprio e, num mundo de incerteza, o seu monopólio do que é certo seria supremamente lucrativo”.

Dito isso, a pandemia de coronavírus, declarada em março de 2020, impôs desafios significativos ao comportamento dos preços, que oscilaram acentuadamente, em especial os insumos de saúde.

No Brasil, os órgãos de controle logo demonstraram preocupação com a integridade das contratações emergenciais que ocorreriam e o uso adequado dos recursos públicos, ante o fenômeno das “licitações invertidas”, no sentido trazido pelo ministro Benjamin Zymler, do TCU, de que eram os órgãos contratantes que estavam sendo licitados, em disputas por escassos produtos.

Apesar dos casos de fraudes e conluios em compras públicas de insumos de saúde, o que nos interessa não é debater as infindáveis controvérsias de casos concretos[3], mas colocar em perspectiva se a função dos preços foi bem compreendida em decisões do TCU no contexto da pandemia.

No Acórdão 544/2023-Plenário[4], o TCU entendeu que não houve superfaturamento em uma compra de álcool em gel, “tendo em vista que a aquisição ocorreu entre março e abril de 2020, período da pandemia de covid-19 em que houve grande variação dos preços contratados de insumos, quando a produção de álcool líquido, álcool gel, máscaras, aventais e outros itens ainda não havia se adequado à demanda.”

Nesse caso, o TCU reconheceu que o preço praticado, embora acima das médias de mercado, encontrava-se no contexto de variações abruptas decorrentes do choque de demanda, até que o incentivo criado por esses preços pudesse equilibrar a oferta. Houve aqui uma compreensão realista sobre o mecanismo de preço.

Já no Acórdão 18.854/2021-1ª Câmara, o TCU entendeu que houve superfaturamento na aquisição de álcool em gel, a partir da análise comparativa dos preços praticados com estimativas de mercado. Aquela decisão foi parcialmente reformada pelo Acórdão 1.951/2023-1ª Câmara, afastando a responsabilidade do gestor, mas mantendo o dever de ressarcimento da empresa pelo superfaturamento.

Nesse caso, a variação de preços causada pelo choque de demanda no início da pandemia não foi considerada, ignorando que os preços passados dificilmente iriam refletir a volátil realidade da cadeia produtiva dos insumos de saúde.

No Acórdão 381/2023-Plenário, o TCU considerou que a formação de preço apresentada pela empresa fornecedora (no caso, de máscaras cirúrgicas) apontava que o custo de aquisição da fábrica já estava em preços acima das médias de referência usadas no caso concreto, de forma que o preço estava justificado, demonstrando seu papel como portador de informações imediatas, transmitidas a partir da cadeia de produtores e fornecedores.

Por fim, no Acórdão 7.410/2024-2ª Câmara, que também apurou possível superfaturamento em aquisições de álcool em gel no ápice da pandemia, foi apontada a oscilação dos preços no período e o problema da inexistência de ganho de escala nas aquisições de maior quantidade, tornando difícil a caracterização objetiva da antieconomicidade dos preços praticados no período, mesmo quando acima das bandas superiores das médias apuradas.

Com esses poucos exemplos, vemos como a compreensão básica do funcionamento da economia de livre mercado e o papel central do preço como coordenador da oferta e da demanda, transmitindo em tempo real informações sobre a cadeia produtiva, possui repercussões sérias nos fundamentos jurídicos da responsabilidade apurada pelo TCU, constituindo a diferença entre condenar gestores públicos e empresas a ressarcir o erário ou simplesmente reconhecer um fato da vida, fora do controle de todos nós, mas importante para o correto funcionamento do sistema econômico, ainda que em momentos pontuais a sociedade se depare com “distorções” de preços, se comparados com períodos de normalidade.

Aliás, é de se questionar até mesmo a premissa do “preço justo”. Sowell afirma que “[o] fato de que os preços flutuam ao longo do tempo, e ocasionalmente crescem acentuadamente ou sofrem quedas abruptas, leva algumas pessoas a concluir equivocadamente que os preços divergem de seus valores “reais”. Todavia, seus níveis normais sob condições normais não são mais reais ou válidos que seus níveis muito elevados ou muito baixos sob condições diferentes”.[5]

Restam as opções entre aceitar momentaneamente as naturais variações de preço, que cumprem um importante papel, como vimos; intervir de forma política, controlando-os artificialmente, desarticulando sua capacidade informacional sobre toda a cadeia produtiva, com as consequências bem sabidas pelos economistas e vividas no passado recente brasileiro, mas esquecidas nos processos decisórios de nossas instituições; ou até mesmo, em retrospecto, imputar responsabilidade por danos ao erário, o que pode ser um erro, a depender do caso concreto.

Concluindo a Hayek, com quem iniciamos o texto: “[t]emos de encarar o sistema de preços como um desses mecanismos de comunicação de informação, se quisermos compreender a sua verdadeira função – uma função que, obviamente, ele cumprirá de forma tanto menos perfeita quanto mais rígidos se tornarem os preços”.


[1] Economia Básica, Vol. 1, Thomas Sowell, 2018.

[2] O pensamento econômico em perspectiva. Uma história crítica. John Kenneth Galbraith. São Paulo: Pioneira. Editora da Universidade de São Paulo. 1989.

[3] A dificuldade de se debater preços e médias de mercado nos remete à obra Prophets Of Regulation, de Thomas K. McCraw, publicada em 1984, que aponta as discussões, ainda no século XIX no contexto do nascimento das instituições reguladoras americanas, sobre o “inferno” dos sistemas de custos e taxas de retorno dos empreendimentos ferroviários americanos.

[4] Todas as decisões do TCU citadas podem ser acessadas em https://portal.tcu.gov.br/

[5] Sowell, op.cit., pg. 27.