“A arte desafia a tecnologia, e a tecnologia inspira a arte.”
John Lasseter
Ao longo do tempo, muito se falou sobre a ascensão das máquinas e em como elas conquistariam o mundo, mas ninguém (ou quase ninguém) esperaria que além de conquistadoras, as máquinas se tornariam criadoras.
Em seu início, na década de 1940, o computador foi concebido para executar uma variedade de tarefas matemáticas e lógicas, aliviando o ônus de cálculos manuais demorados. A partir da década de 1950, cientistas e pesquisadores começaram a explorar a ideia de criar máquinas capazes de realizar tarefas que normalmente requeriam inteligência humana, dando início ao que ficaria conhecido como “inteligência artificial”.
O ano de 1956 é conhecido como o “Marco Zero da IA” considerando que na Conferência de Darmouth College, o termo “inteligência artificial” foi utilizado pela primeira vez para batizar o campo de pesquisa. Inclusive, alguns dos participantes do Dartmouth workshop, como Alan Turing, Herbert Simon e John McCarthy se tornaram líderes na pesquisa em IA.
Os investimentos iniciais no estudo da inteligência artificial incluíram o desenvolvimento de algoritmos, a criação de linguagens de programação específicas para IA e a exploração de conceitos como redes neurais, que representaram um marco fundamental na história da ciência da computação, e lançaram as bases para o rápido progresso e inovações que vem sendo testemunhadas hoje.
A capacidade do computador de processar informações e executar algoritmos abriu caminho para a criação de obras de arte digitais, inaugurando uma era de experimentação artística e criatividade tecnológica. O matemático e artista Frieder Nake se tornou um pioneiro na arte computacional na década de 1960 ao desenvolver algoritmos que permitiam ao computador gerar arte. No entanto, a primeira obra de arte digital amplamente reconhecida surgiu em 1966, quando o especialista em informática Kenneth C. Knowlton, por meio de seu trabalho intitulado “Jovem Nua”, converteu uma fotografia de uma jovem desprovida de roupas em uma imagem composta por pixels de computador, introduzindo, assim, o corpo nu feminino no léxico da arte do século 21.
A década de 1970 viu o surgimento das primeiras exposições de arte computacional, e artistas como Harold Cohen desenvolveram programas que produziam arte de maneira autônoma. Com o advento dos computadores pessoais nas décadas de 1980 e 1990, a arte digital se tornou mais acessível, levando a uma explosão de criatividade e diversidade na cena artística.
Ao longo de décadas, a arte digital evoluiu em paralelo com os avanços tecnológicos, incorporando técnicas e mídias digitais cada vez mais sofisticadas. Com o crescimento da Internet e das redes sociais, a arte digital também ganhou espaço nas plataformas digitais, ampliando seu alcance e permitindo que artistas compartilhem seu trabalho com públicos globais. Os computadores têm, portanto, produzido obras de arte há muitas décadas, mas que dependiam fortemente da participação criativa do programador; a máquina era, na maioria das vezes, um instrumento ou ferramenta, muito semelhante a um pincel ou uma tela.
Em 1974, devido às dificuldades do projeto de desenvolvimento da inteligência artificial e pressões políticas, os governos dos EUA e do Reino Unido interromperam o financiamento de pesquisas nesse campo, o que deu início a um período conhecido como “inverno da IA”. O interesse e o investimento na IA ressurgiram nas primeiras décadas do século 21, à medida que a aprendizagem de máquina foi aplicada com sucesso em vários problemas acadêmicos e industriais, utilizando-se de novos métodos, uso de hardwares poderosos e coleta de imensos conjuntos de dados.
Em 2012, cientistas do Google X, uma divisão secreta de pesquisa e desenvolvimento da empresa Alphabet Inc. (empresa-mãe do Google) construiu uma rede neural com 16 mil processadores de computador e 1 bilhão de conexões. Nos anos seguintes, big players da indústria da tecnologia investiram significativamente em inteligência artificial, reconhecendo seu potencial transformador. Com base em um estudo realizado pelo IDC Worldwide Artificial Intelligence Spending Guide, os investimentos globais em inteligência artificial, abrangendo software, hardware e serviços para sistemas orientados para IA, devem alcançar mais de US$ 300 bilhões até 2026.
Contudo, à medida que a IA desenha paisagens em telas, composições em códigos e artes em algoritmos, surge uma nova fronteira jurídica para a qual as leis atuais não oferecem respostas definitivas. Onde está o limiar entre a mente humana e o cérebro eletrônico? Quem detém a autoria quando os mestres são máquinas? Enquanto a IA avança no mundo, o abismo legislativo convida a uma reflexão sobre os direitos autorais no reino das máquinas.
O uso de inteligência artificial por artistas está se tornando cada vez mais difundido, dificultando a distinção entre obras criadas por um ser humano e aquelas criadas por um computador. Isso tem implicações importantes para o direito autoral, que tradicionalmente protege apenas obras criadas por um ser humano. Em geral, os países seguem os princípios estabelecidos em convenções internacionais, como o Acordo TRIPS da OMC e a Convenção de Berna, que estipulam padrões mínimos de proteção. No entanto, os detalhes das leis de direitos autorais, incluindo o período de proteção e as exceções, podem variar significativamente de um país para outro.
No Brasil, foi criada em 2021 a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA) com o papel de nortear e desenvolver ações em prol do desenvolvimento e uso da Inteligência Artificial, de forma consciente e ética. Alinhada às diretrizes da OCDE endossadas pelo Brasil, a EBIA fundamenta-se nos cinco princípios definidos pela Organização para uma gestão responsável dos sistemas de IA, quais sejam: (i) crescimento inclusivo, o desenvolvimento sustentável e o bem-estar; (ii) valores centrados no ser humano e na equidade; (iii) transparência e explicabilidade; (iv) robustez, segurança e proteção e; (v) a responsabilização ou prestação de contas (accountability).
O direito autoral é um pilar essencial na proteção das obras autorais, concedendo aos criadores o controle sobre suas criações e incentivando a inovação artística e intelectual. Esse sistema legal oferece aos autores o direito exclusivo de reproduzir, distribuir, exibir e adaptar suas obras, garantindo que eles possam colher os benefícios de seu trabalho, sendo reconhecidos e recompensados por suas obras.
Diante desse novo cenário de inovação no qual a inteligência artificial passa a ganhar papel de destaque, surgiram dois caminhos para lidar com a questão de direito autoral sobre obras em que a interação humana foi posta em segundo plano. O primeiro seria o de negar a proteção de direitos autorais para obras geradas por um computador e o segundo seria o de atribuir a autoria dessas obras ao criador do programa.
Alguns países vêm seguindo o primeiro caminho, como os Estados Unidos, por exemplo, onde o Escritório de Direitos Autorais declarou que “registrará uma obra de autoria original, desde que a obra tenha sido criada por um ser humano.” Essa posição deriva da jurisprudência (Feist Publications v Rural Telephone Service Company, Inc. 499 U.S. 340, 1991), que especifica que a lei de direitos autorais protege apenas “os frutos do trabalho intelectual” que “se baseiam nos poderes criativos da mente”. Da mesma forma, na Austrália (Acohs Pty Ltd v Ucorp Pty Ltd), o tribunal declarou que uma obra gerada com a intervenção de um computador não poderia ser protegida por direitos autorais porque não foi produzida por um ser humano.
Na União Europeia, o Tribunal de Justiça (TJUE) também declarou em várias ocasiões, especialmente em sua decisão de referência Infopaq (C-5/08 Infopaq International A/S v Danske Dagbaldes Forening), que o direito autoral se aplica apenas a obras originais e que a originalidade deve refletir a “própria criação intelectual do autor”, o que claramente significa que um autor humano é necessário para que uma obra com direitos autorais exista.
Outros países como Hong Kong (SAR), Índia, Irlanda, Nova Zelândia e Reino Unido passaram a atribuir a autoria da obra ao programador, seguindo o segundo caminho proposto a esse cenário. De acordo com a Lei de Direitos Autorais do Reino Unido, “no caso de uma obra literária, dramática, musical ou artística gerada por computador, o autor será considerado a pessoa que realizou os arranjos necessários para a criação da obra”.
Por outro lado, a título de comparação prática, questionar se a titularidade sobre os direitos autorais de uma obra digital seria do programador equivaleria a debater se os direitos autorais sobre um livro seriam de quem criou a caneta ou do escritor. Será que a tecnologia, tal como a caneta, não seria mera ferramenta a ser utilizada como um recurso para a criação de obras pelos seres humanos? É necessário, portanto, compreender a razão dessa questão ter se tornado problemática no mundo digital.
Em um outro exemplo real que se conecta ao tema, temos a Microsoft, que desenvolveu o programa Word, mas claramente não detém os direitos autorais de cada obra produzida usando esse software. Os direitos autorais pertencem ao usuário, ou seja, ao autor que usou o programa para criar sua obra. Quando se trata de algoritmos de inteligência artificial capazes de gerar uma obra, a contribuição do usuário para o processo criativo pode ser simplesmente apertar um botão para que a máquina faça o seu trabalho, gerando textos ou imagens. No entanto, essa contribuição é muitas vezes extremamente valiosa na produção original e única que se transformará na obra final.
Ao que parece, as dúvidas sobre a proteção de direitos autorais em um contexto digital se tornarão cada vez mais complexas à medida que o uso de inteligência artificial por artistas se torne mais difundido. Ainda, à medida que as máquinas fiquem melhores na produção de obras criativas, será mais difícil a distinção entre obras feitas por um ser humano e aquelas feitas por um computador.
Enquanto contemplamos esse novo capítulo na interseção entre arte e tecnologia, somos instigados a redefinir não apenas os limites da criatividade, mas também as fronteiras que delineiam a autoria em um mundo cada vez mais permeado pela inteligência artificial.