A questão não é se, mas quando. A atual ordem constitucional parece ferida de modo irreversível. Resta-lhe perante a deslegitimação promovida por setores à direita uma longa e cruel agonia até que o atual intervalo democrático que já dura 40 anos encontre seu fim.
Embora assaz pessimista, essa previsão ecoa movimentos nos planos doméstico e internacional. No passado, nem as Cartas Magnas nem o regime político no Brasil ficaram imunes a transformações sociais domésticas e mudanças geopolíticas significativas como as testemunhadas na última década.
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No plano doméstico, a consolidação do agronegócio como força motriz do equilíbrio macroeconômico graças a contínuos superávits na balança comercial com a exportação de commodities e a ascensão evangélica moveram o pêndulo político para um campo afeito à retórica que combina liberalismo na economia e conservadorismo nos costumes.
Se, por um lado, a proporção de evangélicos cresceu num ritmo menor que o esperado entre os censos de 2010 e 2022, variando entre 21,7% para 26,9% da população, por outro há evidências de que parte do catolicismo moveu-se para o espectro conservador para constranger a perda de fiéis para outras denominações cristãs.
Internacionalmente, o cenário aponta para um declínio da democracia liberal e até mesmo de regimes que, sem respeitar diretos fundamentais em sua plenitude, ainda preservam a mínima perspectiva de alternância do poder. Isso porque a emergência de uma nova Guerra Fria entre Estados Unidos e o bloco China-Rússia deve levar Washington a buscar aliados no Sul Global independentemente de seu compromisso com valores democráticos.
Ainda que o trumpismo entre em declínio, a política externa americana nas próximas décadas deve deixar em segundo plano a agenda democrática que caracterizou as relações com a América Latina durante a era da globalização. Sobraram apenas elementos de neoliberalismo, notadamente a agenda de privatizações e acesso a recursos materiais críticos à sobrevivência na disputa com Pequim e Moscou.
Nesse contexto, cai como uma luva a ascensão ao poder de figuras subservientes aos interesses americanos em países do Hemisfério Ocidental. No Brasil, a família Bolsonaro e seu filhote direto, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), enquadram-se nessa categoria. Compensam uma agenda de venda do patrimônio público e redução de direitos sociais com um nacionalismo religioso de araque. Satisfazem demandas conservadoras e reacionárias em políticas públicas enquanto destilam aporofobia na regulação econômico-social.
No afã de atrair para si os votos bolsonaristas, outros presidenciáveis da direita, notadamente os governadores Romeu Zema (Novo-MG), Ronaldo Caiado (União Brasil-GO) e Ratinho Júnior (PSD-PR), encampam a mesma agenda subserviente.
Como já notei em colunas anteriores, falta à direita brasileira um pensamento coerente em política externa. Na falta de uma postura em defesa da soberania nacional, não deve tardar a surgir movimentações — inclusive em meios militares — para se contrapor ao entreguismo daqueles que não têm vergonha de usar o boné Make America Great Again, como Tarcísio fez ao celebrar o retorno de Donald Trump à Casa Branca em janeiro passado. Tais movimentações também teriam o potencial de minar a democracia no país.
Concentremos, porém, nosso foco na ameaça imediata. A ordem constitucional atual tem sua legitimidade posta em xeque quando um julgamento da proporção do que deve condenar Jair Bolsonaro (PL) et caterva por tentativa de golpe de Estado mal provoca comoção na opinião pública. O subtexto implícito é que, não importa a dureza da lei, os golpistas serão anistiados por uma próxima administração de direita já em 2027, haja vista a falta de perspectiva de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recupere sua popularidade.
A falta de legitimidade da atual ordem leva a direita a fazer ameaças impunemente. A mais recente e chocante foi expressa pelo filho 01 do clã golpista. Em entrevista publicada neste domingo (15), o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) disse sem meias palavras que um futuro governo à direita pode ter que usar a força para fazer valer uma eventual anistia a seu pai e demais golpistas.
Flávio sinaliza, portanto, que, caso a direita retorne ao poder, haverá um golpe de Estado. Cairia como uma luva não apenas para livrar os revolucionários do senso comum da cadeia, mas também para revisitar o contrato social que fundamenta a Nova República: um Estado democrático de Direito com elementos de bem-estar, encarnados na universalização da educação básica e do acesso a serviços de saúde gratuitos e complementados por programas de transferência de renda que quase nada custam perante os juros pagos a rentistas, penduricalhos da elite do funcionalismo e subsídios assegurados por lobbies que se tornaram cada vez mais ativos no Congresso Nacional.
A ordem constitucional que nos aguarda caso o projeto Tarcísio 2026 ou qualquer outro genérico do bolsonarismo seja vitorioso pode até acabar com o “vício” no Bolsa Família, tal como um empresário intitulado “rei do ovo” rotula a mais bem-sucedida política de transferência de renda do país, a qual seria um desestímulo ao trabalho. Sem ironia, pode-se dizer que, do ovo da serpente golpista, serão reforçados outros vícios, notadamente aquilo que poderia ser chamado de SEDEUBEM, ou Síndrome de Exploração do Estado e União Brasileira em Moto-Contínuo.
Ou seja, não importa o rótulo: as elites domésticas e internacionais sempre querem se dar bem às custas do povo que, mais do que nunca, hoje parece querer chancelar um projeto que lhe sacrifica no altar de um pretenso crescimento econômico junto com a democracia, a Constituição, os direitos sociais e, sobretudo, a soberania nacional.