Quem acompanha os concursos públicos pode notar dois fenômenos recentes nas cotas destinadas a pessoas com deficiência.
O primeiro refere-se ao preenchimento dessas vagas. A Constituição Federal garante entre 5% e 20% das vagas para esse público. Se essas vagas não são ocupadas, elas são revertidas para os candidatos da ampla concorrência. Durante algum tempo, era comum essas vagas não serem totalmente preenchidas, já que muitos candidatos com deficiência não alcançavam a nota de corte. Hoje, no entanto, o cenário se inverteu: quase todas as vagas são preenchidas.
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À primeira vista, isso pode parecer um avanço na inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho por meio dos concursos. Contudo, importante estar atento a um segundo fenômeno, relacionado ao primeiro: o crescimento expressivo do número de candidatos que apresentam laudos de determinados diagnósticos médicos de doenças ou sequelas para concorrer às vagas reservadas a pessoas com deficiência.
A relação entre os dois fenômenos remonta ao ano de 2012, quando a Lei 12.764 reconheceu pessoas com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) como pessoas com deficiência para todos os efeitos legais. Posteriormente, foram reconhecidos como deficiência por lei a visão monocular (Lei 14.126/2021), a surdez unilateral (Lei 14.768/2023), e a fibromialgia neste ano (Lei 15.176/2025).
Essas leis foram celebradas como avanço de direitos, mas, diante da não implementação da avaliação biopsicossocial da deficiência, acaba por gerar distorções.
Ao reforçar o chamado modelo médico de caracterização da deficiência, as leis permitem que candidatos sem barreiras significativas no acesso à educação ou ao trabalho, ou seja, sem restrição importante em sua participação social, sejam considerados aptos a concorrer, em igualdade formal, com quem enfrenta grave exclusão e falta de oportunidades. Ou seja, pessoas com laudo médico concorrem diretamente com pessoas com deficiências moderadas ou graves, como se estivessem em condições equivalentes, o que, na prática, não corresponde à realidade.
Essa distorção ficou evidente em bancas de avaliação da deficiência em processos seletivos dos quais participei. Em diversos casos, encontrei candidatos munidos de laudos médicos com as condições citadas que, ao serem questionados sobre barreiras ou adaptações necessárias para exercer o cargo, respondiam nenhuma.
Eventuais indeferimentos dessas candidaturas são contraproducentes e ineficazes, pois a judicialização virou regra. Amparados na literalidade da lei e diante da ausência de regulamentação e implementação da avaliação biopsicossocial da deficiência, os tribunais tendem a conceder ganho de causa aos candidatos, desconsiderando a inexistência de barreiras significativas em suas trajetórias.
É importante destacar que existem candidatos com esses diagnósticos que, de fato, enfrentam barreiras relevantes e vivenciam processos de exclusão social. Não é a esses casos que a presente análise se refere, mas àqueles em que o diagnóstico é utilizado de forma inadequada, distanciando-se do objetivo original da legislação.
O resultado do uso exclusivo do laudo médico para caracterizar a deficiência é duplo. De um lado, pessoas sem barreiras reais concorrem com quem tem trajetórias marcadas pela exclusão, aprofundando desigualdades e comprometendo o princípio da isonomia. De outro, candidatos da ampla concorrência com desempenho superior são preteridos, porque as vagas, que antes eram revertidas para a ampla concorrência diante da falta de aprovados com deficiência, passam agora a ser ocupadas por candidatos que não tem deficiência, apenas o diagnóstico de uma condição.
Esse cenário não acontece por acaso. As pessoas respondem a incentivos. Uma vez que a lei tornou suficiente a apresentação de um laudo médico para concorrer às cotas, e diante da lacuna deixada pela não implementação da avaliação biopsicossocial, é previsível que candidatos maximizem suas chances de aprovação apresentando diagnósticos dessas condições.
Nesse sentido, não cabe atribuir responsabilidade individual aos candidatos, mas reconhecer que eles respondem a incentivos criados pela própria legislação. É a norma jurídica que deve orientar condutas de modo a promover justiça social.
Além disso, esses incentivos criam uma cadeia de serviços e práticas associadas: produção de diagnósticos, serviços jurídicos, influenciadores digitais, e associações que defendem amplamente a causa. Todos agem dentro do incentivo criado por uma política pública mal focalizada e reforçam distorções que fragilizam a efetividade e a credibilidade das ações afirmativas, prejudicando todas as pessoas com deficiência, em especial, aquelas com deficiências mais graves.
Paradoxalmente, entre os que podem estar mais afetados por esses incentivos estão também as próprias pessoas com que tem os diagnósticos das deficiências por lei e que, de fato, enfrentam barreiras significativas. Elas necessitam efetivamente da reserva de vagas para garantir inclusão no mercado de trabalho, mas podem estar se tornando menos presentes entre os selecionados nos concursos justamente por serem preteridas por candidatos munidos de laudos que, sem enfrentar barreiras relevantes, conseguem alcançar melhor desempenho.
Manter o atual desenho, em que apenas o laudo médico é suficiente para que candidatos em situações de “deficiência por lei” concorram nas cotas destinadas às pessoas com deficiência, além de injusto, representa um risco à própria garantia de direitos. Sem critérios claros e sem uma avaliação que vá além do simples laudo médico, a reserva de vagas pode ser percebida como um atalho para alguns, ao custo da frustração para muitos.
Esse efeito tende a abrir precedentes para que outros diagnósticos médicos sejam tratados da mesma forma, como tem ocorrido, ampliando distorções. A consequência é a banalização da política pública e, com isso, a corrosão de sua legitimidade. Em outros termos, se a sociedade passar a enxergar o sistema de cotas como um espaço de privilégios para alguns e como um instrumento ineficaz para beneficiar as pessoas com deficiência em situação de maior vulnerabilidade, cria-se um terreno fértil para retrocessos.
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Não resta dúvida que o debate em torno da suficiência do laudo médico para concorrer nas vagas destinadas às pessoas com deficiência não é apenas técnico, mas também ético e político. É técnico porque envolve definir o melhor critério para caracterizar a deficiência. É ético porque diz respeito a escolha de políticas públicas realmente capazes de reduzir desigualdades priorizando os mais vulneráveis. E é político porque exige conciliar interesses de vários grupos sociais, com interesses distintos e muitas vezes conflitantes. sem omitir grupos ou criar novas exclusões.
Diante disso, cabe ao Legislativo e ao Judiciário ponderar os limites do uso exclusivo do diagnóstico médico para caracterizar a deficiência e propor alternativas mais adequadas para contemplar pessoas com restrições leves de funcionalidade. Aos órgãos de controle, incumbe fiscalizar a aplicação da política de cotas, evitando distorções. Já ao Executivo cabe, de forma urgente, implementar a avaliação biopsicossocial, de modo a alinhar a política pública à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e às melhores práticas de justiça social.