Quando a autorregulação vira excesso: um caso da reforma do Novo Mercado pela B3

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A B3, única bolsa de valores em operação no país e administradora do mercado de balcão organizado, iniciou recentemente mais um processo de revisão do Regulamento do Novo Mercado (RNM), propondo medidas que, embora apresentadas como aprimoramentos de governança, têm gerado inquietações significativas no mercado.

As mudanças incluem o aumento da quantidade mínima de conselheiros independentes de 20% para 30% ou pelo menos dois conselheiros independentes, prevalecendo o que for maior; reduz os critérios de independência, ao impor limites de overboarding; e introduz uma forma de aprovação dessas mudanças distinta do habitual.

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Considerando as elevadas barreiras para que as empresas optem por sair do segmento Novo Mercado (como a necessidade de realizar uma oferta pública de aquisição [OPA] para a totalidade das ações em circulação), essas regras tornam-se imposições praticamente inescapáveis às empresas nele listadas.

Vale dizer, o investidor não tem alternativa, e o emissor, uma vez listado, fica preso às novas condições. Mais do que reforçar boas práticas, o movimento regulatório da B3 acena para um cenário de “overregulation”, suprimindo a autonomia privada e limitando o espaço para soluções de governança mais flexíveis e customizadas.

Do ponto de vista jurídico, é importante lembrar que a B3 atua como entidade autorreguladora com base no art. 17, §1º da Lei 6.385/1976, e sob supervisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Seu poder regulatório deriva, portanto, da própria legislação estatal, o que a sujeita aos princípios constitucionais da legalidade, proporcionalidade e eficiência regulatória. A natureza privada da B3 não a exime de respeitar os parâmetros do direito público, sobretudo quando exerce funções típicas de regulação e de polícia administrativa.

Essa lógica é reforçada pela Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) e pelo Decreto 10.411/2020, que impõem a necessidade de Análise de Impacto Regulatório (AIR) como condição prévia para mudanças normativas de alto impacto. No caso da reforma do Novo Mercado, a AIR não foi realizada.

Nesse contexto, permanece sem resposta o fundamento empírico para fixar o novo piso em 30% de conselheiros independentes — e não em 25%, 35%, 40% ou outro percentual. A B3 deveria publicar a metodologia que sustenta o corte de 30%, demonstrar porque tal patamar entregaria benefícios adicionais mensuráveis e esclarecer quais critérios alternativos (por exemplo, composição acionária, complexidade do negócio) foram considerados e descartados.

Ainda que o Novo Mercado precise evoluir, qualquer revisão das “regras do jogo” deve ser necessariamente imprescindível (“must have”), e não apenas conveniente (“nice to have”), pois, afinal, os emissores aderiram a um conjunto específico de obrigações em troca dos benefícios de reputação e liquidez do segmento, e, portanto, tal conjunto de regras deve ser o mais estável e previsível possível.

Outro ponto crítico é o mecanismo de aprovação do novo regulamento, que presume o silêncio como consentimento. Pelo art. 77 do RNM, companhias que não se manifestarem formalmente contra a proposta são consideradas favoráveis às mudanças.

Em um ambiente de assimetria de informação, de crescente pluralidade de perfil das companhias listadas no segmento (startups de tecnologia e empresas de médio porte) e de custos de transação elevados, essa regra induz à inércia e gera uma típica situação que na teoria de jogos é conhecida por “dilema de prisioneiros”, ou um equilíbrio de Nash subótimo: muitas empresas acabam aprovando tacitamente regras que não desejam, mas das quais não conseguem escapar. Desse modo, se não houver uma coalizão contrária superior a um terço das companhias do Novo Mercado, todas as empresas desfavoráveis à mudança são arrastadas para o “sim”.

Ou seja, fica claro que os mecanismos de alteração e de saída do Novo Mercado estão ultrapassados, tanto pelas profundas mudanças no perfil médio das companhias quanto pelo incremento das exigências propostas, sem que tenham sido estabelecidas condições que permitam a cada companhia reavaliar – à luz de sua realidade – a conveniência de permanecer ou de sair do segmento, em condições diferenciadas.

O contexto de revisão do RNM deveria estar em harmonia com os mesmos requisitos nos quais a companhia deliberou pelo ingresso no segmento, também considerando o voto do grupo de controle para a eventual deliberação pela saída, de forma paritária.

Tão mais grave ainda, é o impacto potencial sobre os IPOs. Se parte das companhias potenciais emissoras desistir de abrir capital em razão do novo ônus regulatório, o prejuízo ao mercado pode ser expressivo. Cenários simulados indicam que uma redução de 10% nos IPOs de empresas familiares poderia representar perda de R$ 1,4 bilhão por ano em financiamento de mercado.

Não se trata aqui de deslegitimar o papel da B3 como promotora da governança corporativa. Trata-se, antes, de exigir que mudanças dessa magnitude sejam pautadas por critérios de racionalidade econômica e previsibilidade jurídica. E finalmente, que qualquer alteração do RNM ocorra por meio de um processo que elimine as atuais distorções e desbalanceamentos que o atual RNM possuir.