Quando a Ancine ganhou o controle remoto

  • Categoria do post:JOTA

Quando as Leis 14.814 e 14.815/2024 foram publicadas no Diário Oficial da União, muito destaque se concedeu à renovação das cotas de conteúdo nacional no Serviço de Acesso Condicionado (SeAC) e da cota de tela. No entanto, à sombra destes temas, encontra-se uma inovação legislativa que vai muito além da mera renovação de institutos: a ampla competência recém-garantida à Ancine pela Lei 14.815/2024 para combater violações de direitos autorais de conteúdos audiovisuais tem o potencial de transformar a atuação da agência, expandindo de maneira significativa seu poder de polícia – de modo similar ao que vem acontecendo com reguladores audiovisuais estrangeiros, como a Arcom (França) e a Agcom (Itália), hoje detentores de amplos poderes para combater infrações ao direito autoral no ambiente digital.

Antes da publicação da Lei 14.815/2024, o art. 7º, III da MP 2228/2001 já garantia à agência a competência de “promover o combate à pirataria de obras audiovisuais”, o que fundamentava ações de capacitação e apoio a autoridades policiais, como na Operação 404, que bloqueou acesso a diversos endereços de internet contendo violação de direitos autorais de obras audiovisuais. Todavia, não eram claros os limites de uma possível atuação direta da Ancine no ambiente digital, hoje âmbito mais que preferencial da pirataria; além disso, pesava o fato de que a Anatel é que tem competência regulatória sobre os provedores de internet. Por estes motivos, num primeiro momento, a Ancine se reservou um papel de coadjuvante: submeteu a consulta pública uma minuta de instrução normativa que atribuía à agência um papel, na prática, de mera comunicadora de infrações a direitos autorais – fosse aos próprios infratores ou ao Judiciário.[1]

A iniciativa acabou indo não adiante, mas ainda assim a agência manteve sua política de combate à pirataria, concluindo acordos de cooperação com empresas e associações e, mais importante, articulando com a Anatel para a instituição de um sistema administrativo de bloqueio de endereços de internet no qual se planejava uma espécie de cruzamento de competências das agências: a agência do audiovisual traria à mesa o combate à pirataria, ao passo que a agência das telecomunicações viria com a defesa do bom uso da redes e a interlocução direta com os provedores de internet, seus regulados.

Na virada de 2022 para 2023, no entanto, a Ancine mudou de posição. Não só cancelou os acordos de cooperação com particulares, mas também abandonou a luta contra a pirataria para focar na defesa de direitos autorais de produtores brasileiros – a mudança de nome da Coordenação de Combate à Pirataria para Coordenação de Proteção ao Direito Autoral foi sintomática. Segundo deliberação da Diretoria Colegiada, o combate à pirataria na internet por parte da Ancine apresentaria problemas de “sobreposição de competências” com a Anatel,[2] que de fato continuou em paralelo com suas iniciativas de combate à pirataria em set-top boxes.

Contudo, pouco mais de um ano depois, a Lei 14.815/2024 trouxe a Ancine de volta ao palco da proteção de direitos autorais, agora tendo nas mãos um poderoso controle remoto. De acordo com o art. 3º da referida lei, já em vigor, a agência do audiovisual passa a poder determinar “a suspensão e cessação do uso não autorizado de obras brasileiras ou estrangeiras protegidas”. Mas qual a efetiva extensão desta nova competência?

Primeiro, quanto ao objeto, exposto no § 1º, a Ancine tem o condão de proteger não apenas obras brasileiras, como fazia crer a deliberação da Diretoria Colegiada do final de 2022, mas também obras estrangeiras. Além disso, seus poderes de proteção ao direito autoral agora abarcam todos os conteúdos e eventos mencionados na Lei do SeAC, como material audiovisual jornalístico, transmissões de eventos de interesse nacional (em especial, esportivos) e até jogos eletrônicos, que não deixam de ser referidos.

Em seguida, o que pode a agência fazer para proteger os direitos autorais? Segundo o § 2º, a agência tem ampla discricionariedade para eleger medidas de suspensão e cessação “que impeçam sua emissão, difusão, transmissão, retransmissão, reprodução, acesso, distribuição, armazenamento, hospedagem, exibição e disponibilidade e quaisquer outros meios que impliquem violação de direitos autorais.” Em outras palavras, pode tanto agir em mídias tradicionais, impedindo retransmissões clandestinas de sinais ou venda de produtos pirateados, quanto no ambiente digital, onde é capaz de dar fim a qualquer tipo de acesso, disponibilidade ou hospedagem – inclusive, é bom que se diga, em tempo real, para eventos ao vivo.

Neste sentido, é digno de nota que a nova competência até mesmo ultrapassa em amplitude as competências correspondentes da Anatel, já que a Ancine pode não apenas descontinuar atos típicos de rede, como transmissão, emissão e acesso, mas também atos digitais que não necessitam de nenhum tipo de conectividade, como o armazenamento ou a reprodução. Mais do que isso, pelos critérios de temporalidade e especialidade consagrados na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), abre-se a possibilidade jurídica para que a Ancine aja até mesmo de maneira completamente independente da Anatel, muito diferente do que foi ventilado até o momento.

A ampla competência, no entanto, não significa que a agência possa fazer qualquer coisa. Para citar apenas alguns condicionamentos importantes, ainda será preciso motivar o ato administrativo que importar em suspensão ou cessação, em respeito ao art. 50 da Lei 9.784/1999, e sopesar eventuais medidas de indisponibilização na internet com o princípio da neutralidade de rede – que, conforme o art. 24, VII do Marco Civil da Internet, ainda guia a atuação do Poder Público.

Dito de outra forma, a agência deverá construir sólida convicção sobre a ilicitude dos conteúdos antes de expedir ordens de suspensão e cessação, o que aponta para a necessidade de proximidade dos titulares de direitos com relação à Ancine, de modo a comunicá-la completa e tempestivamente a respeito de eventuais violações. De todo modo, uma vez devidamente construída a convicção a respeito de uma dada utilização ilícita de obra, a nova Lei abre espaço para o uso pela Ancine de bloqueios dinâmicos (na literatura estrangeira, dynamic injunctions), consistentes em ordens diretas de suspensão ou cessação para uma violação que esteja ocorrendo da mesma forma com que já fora identificada anteriormente, mas apenas em outro endereço na internet.

É claro que a efetiva concretização dos procedimentos e possíveis atos de poder de polícia só se dará nos próximos tempos, quando a nova Lei for regulamentada pela agência – autonomamente ou ainda em articulação com a Anatel, se esta for a opção dos reguladores. Seja como for, a Lei 14.815/2024 já pôs nas mãos da Ancine um controle remoto com extensa gama de possíveis comandos.

[1] Minuta de Instrução Normativa – Dispõe sobre o recebimento e o processamento de notícias sobre violações de direitos autorais em sítios ou aplicações da internet e acerca das medidas para contenção dos danos causados: https://www.gov.br/ancine/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/consulta-publica/consultas-publicas-disponiveis/MINUTADEINSTRUONORMATIVASEI1836589.pdf

[2] Ancine. Deliberação da Diretoria Colegiada nº 2508-E. 865a Reunião Ordinária de Diretoria Colegiada, de 21 de dezembro de 2022