Recentemente, o artigo “How Much of the Regulatory State is Safe Post–Loper Bright?”, publicado no Harvard Law Review Blog, reacendeu o debate a respeito do fenômeno denominado regulatory flip-flop. A expressão é usada no direito norte-americano para se referir às mudanças de entendimento nas agências administrativas, de acordo com o contexto político, institucional ou econômico.
Após o caso Loper Bright v. Raimondo houve a superação do regime de deferência judicial automática às interpretações administrativas das agências. A doutrina Chevron (Chevron U.S.A. Inc. v. Natural Resources Defense Council) estabelecia que, quando o texto legal fosse claro, as Cortes deveriam aplicar o sentido normativo estabelecido pelo Congresso. Por sua vez, em caso de ambiguidade, os Tribunais estariam vinculados a um dever de deferência a interpretação razoável encampada pela agência.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
Dessa forma, depois do caso Loper Bright v. Raimondo, houve um comando claro de restrição à liberdade de interpretação das agências. Nesse contexto, surge o seguinte questionamento: em quais situações é legítima a reinterpretação da mesma norma pela agência reguladora?
Esse questionamento também é relevante no Brasil, especialmente em um cenário no qual se deseja a manutenção de um ambiente de integridade regulatória. Embora no país o debate não seja qualificado pela expressão “flip-flop regulatório”, o fenômeno é conhecido por meio de mudanças normativas abruptas sem motivação adequada. Isso ocorre, geralmente, por meio da captura de grupos econômicos ou até mesmo pela alteração na composição da Diretoria Colegiada de uma agência.
O termo é importado da literatura norte-americana, mas os efeitos são bem conhecidos no cenário local, como a falta de segurança jurídica a projetos e investimentos. Em virtude do dinamismo do direito regulatório, a mudança de entendimento sobre temas afetos aos setores regulados pode e deve ser empreendida. Entretanto, o questionamento persiste a respeito da existência de um dever de coerência e estabilidade às decisões administrativas das agências reguladoras?
No contexto dos tribunais brasileiros, o tema já foi positivado. Isso porque o Código de Processo Civil de 2015, em seus arts. 926 e 927, impõe aos tribunais o dever de uniformizar a jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Assim, as mudanças de interpretação feitas pelos tribunais brasileiros (overruling e overriding) são (ou devem ser) fundamentadas, a fim de proteger a confiança legítima dos jurisdicionados.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
Se existe alguma causa superveniente indicativa da necessidade de revisão judicial de entendimento sobre uma norma, há um dever de coerência e diálogo com as decisões judiciais anteriormente expedidas. Nesse sentido, é interessante a utilização da técnica de sinalização, no qual os tribunais advertem o jurisdicionado de que há a possibilidade de mudança interpretativa.
Assim, por que não expandir este raciocínio para as agências reguladoras, que também exercem funções interpretativas e normativas sobre a vida econômica do país?
A alteração de entendimento feita pelo Estado-Regulador gera consequências jurídicas e financeiras relevantes aos administrados. A inserção de novos critérios tarifários ou, em um exemplo prático, a definição do que é ou não serviço essencial, no contexto da internet banda larga, nos Estados Unidos.
Por sua vez, o dever de coerência regulatória não significa engessamento na revisão de entendimentos. Isso porque o Estado-Regulador precisa rever entendimentos diante de novas evidências científicas ou tecnológicas, por exemplo.
Quer acompanhar os principais fatos ligados ao serviço público? Inscreva-se na newsletter Por Dentro da Máquina
Porém, do mesmo modo em que ocorre no sistema de precedentes judiciais, é possível exigir deveres procedimentais de coerência regulatória. Nesse sentido, uma das formas mais comuns de levar o debate para a sociedade é por meio da realização de consultas públicas, na qual se explicita a necessidade de mudança de entendimento anterior e o porquê de a orientação anterior ter se tornado inadequada.
Os deveres de coerência regulatória tornam a atividade administrativa mais previsível e legítima. Por sua vez, o Brasil dispõe de normas positivadas que impõem a Administração Pública o respeito às expectativas legítimas dos administrados, como o princípio da segurança jurídica e da proteção à confiança (art. 2º da Lei 9.784/1999). Ainda, o art. 6º da Lei 13.848/2019 prevê que as alterações de atos normativos de interesse geral, nos processos decisórios das agências reguladoras, devem ser precedidas de análises de impacto regulatório. Nesse particular, os referidos estudos podem e devem incluir justificativas para reinterpretações de temas relevantes à sociedade.
Nesse sentido, a analogia com o Código de Processo Civil de 2015 revela uma lacuna normativa. Isso porque, enquanto os tribunais têm um dever expresso de coerência, as agências reguladoras podem abandonar um posicionamento institucional por meio de atos administrativos, sem controle formal. A referida assimetria abala a segurança jurídica dos setores regulados, o que tem o condão de descredibilizar a imagem do Estado como um agente promotor da previsibilidade institucional.
Assim sendo, a noção de respeito a um dever de coerência regulatória sedimenta o compromisso no país de que mudanças de entendimentos devem ser excepcionais e frutos de um processo decisório maduro e transparente.
O dever de coerência regulatória não impede a evolução normativa, mas garante que ela seja promovida com mais responsabilidade, previsibilidade e diálogo entre os atores envolvidos. Afinal, a regulação é meio de conformar interesses contrapostos, sendo necessário para a pacificação social o diálogo contínuo com os próprios entendimentos administrativos.