‘Qual é o limite?’ e outras perguntas incômodas sobre o Tema 1.079

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Talvez algum dia seja possível entender como a revogação de uma norma em 1986 somente acabaria gerando contenda judicial três décadas e meia (e uma Constituição) depois, com um repentino ajuizamento de mais de 25 mil ações apenas nos últimos três anos. Quem sabe com maiores estudos sobre esse direito achado nas redes sociais, que parece submergir.

Outras questões, contudo, são mais urgentes e carecem de enfrentamento por quem defende que o Parágrafo Único da Lei 6.950/81 ainda está em vigor e, pior, que ele limitaria a base de cálculo das contribuições de terceiros a 20 salários mínimos. A discussão está sendo decidida pelo STJ no Tema 1.079 dos Recursos Repetitivos, gerando frutífero e curioso debate.

A tese que defende a limitação parece doce: ao afastar apenas o limite estabelecido no caput do art. 4º da Lei 6.950/81, o art. 3º do Decreto-Lei 2.318/86 teria mantido aquele previsto no Parágrafo Único daquele dispositivo, o qual ainda seria aplicável às “contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros” e limitaria as respectivas bases de cálculo a 20 salários mínimos.

Mas aqui cabe a primordial pergunta, que tem sido evitada: qual o limite, então, efetivamente estabelecido no Parágrafo Único do art. 4º da Lei 6.950/81, acaso ainda em vigor? Não se trata de exigir rigor técnico absoluto do legislador nem de negar a possibilidade, em abstrato, de um parágrafo veicular uma norma autônoma, mas da mera análise concreta da redação do dispositivo (a qual não guarda qualquer complexidade, frise-se).

O Parágrafo Único do art. 4º da Lei 6.950/81 estabelece: “[o] limite a que se refere o presente artigo aplica-se às contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros”.

Sabendo que sequer há controvérsia de que a limitação estabelecida no caput desse dispositivo foi afastada pelo art. 3º do Decreto-Lei 2.318/86, reitera-se: qual limite ainda estaria em vigor? O que justifica utilizar 20 salários mínimos como parâmetro, já que esse valor não consta no Parágrafo Único do art. 4º da Lei 6.950/81? Qual limite é possível extrair, de forma autônoma, apenas do Parágrafo Único do art. 4º da Lei 6.950/81?

São perguntas evidentemente retóricas, tendo em vista não se tratar de uma norma autônoma. Não há qualquer limite previsto no parágrafo único em análise, que apenas aplicava, às contribuições de terceiros, o limite estabelecido em outro local.

A segunda pergunta, por sua vez, é fundada na genuína incapacidade de compreender como, sem qualquer tipo de fundamento, o limite outrora existente seria aplicado diretamente à folha de salários, base de cálculo das contribuições de terceiros.

É que, na inequívoca redação do caput do art. 4º da Lei 6.950/81, enquanto em vigor, o limite de 20 salários era aplicado de forma expressa ao salário-de-contribuição previsto no art. 5º da Lei 6.332/76, e não à folha de salários. O Parágrafo Único do art. 4º da Lei 6.950/81 também não estabelece a folha de salários como objeto do limite.

Em outras palavras, a limitação, da forma como está sendo veementemente defendida, jamais existiu. A legislação nunca limitou a integralidade da base de cálculo das contribuições a terceiros a 20 salários mínimos. A limitação sempre se aplicou ao salário de contribuição, considerando cada trabalhador individualmente. Qualquer outra linha argumentativa carece de fundamentação legal.

A terceira questão crucial que precisa ser enfrentada diz respeito à legislação constitucional e infraconstitucional supervenientes. Nesse ponto, revela-se mais evidente o silêncio ensurdecedor de quem defende a limitação pretendida quanto à sua compatibilidade com as regras contidas no art. 7, IV, da CF/88 e no art. 3º da Lei 7.789/89, que vedam a vinculação do salário mínimo para qualquer finalidade, ou quanto à legislação específica e posterior que instituiu as exações questionadas, sem qualquer ressalva ou limite às suas respectivas bases de cálculo.

Além disso, também é preciso explicar como aquele limite de 20 salários mínimos, que foi inicialmente criado para incidir sobre o salário-de-contribuição previsto no art. 5º da Lei 6.332/76, se manteria em vigor até hoje, mesmo com a edição da Lei 8.212/91 e a integral regulação do tema salário-de-contribuição em seu art. 28.

Retomam-se as perguntas retóricas. Parece claro que a limitação pretendida não foi recepcionada pela atual ordem constitucional, que veda a vinculação do salário mínimo para qualquer finalidade, e que o salário-de-contribuição previsto na Lei 6.332/76 foi substituído por aquele previsto na Lei 8.212/91.

É dizer, em síntese: o limite que se defende permanecer aplicável por conta do Parágrafo Único do art. 4º da Lei 6.950/81, norma sem qualquer autonomia própria, dependeria do seu caput, expressamente revogado, e incidiria, neste cenário sobre uma base inventada (o limite nunca incidiu quanto à folha de salários), ou sobre uma outra igualmente revogada, além de utilizar parâmetro vedado pela Constituição Federal e pela legislação.

Antes da explosão de litigiosidade, a questão havia sido decidida no sentido da permanência da limitação em apenas dois julgamentos colegiados do STJ, sendo que ambos da mesma Turma, os quais acabaram sendo replicados em decisões monocráticas. Nada que se considere como jurisprudência dominante, a teor do atual entendimento da 1ª Seção do STJ manifestado em Pedidos de Uniformização de Interpretação de Lei Federal.

É o exato oposto do que ocorre, em contrapartida, quanto à identidade existente entre a base de cálculo das contribuições previdenciárias patronais (que não possuem teto) e a das contribuições de terceiros, que é unanimemente reconhecida pela jurisprudência uníssona do STJ, com julgamentos colegiados de todas as ministras e ministros que até então compõem a 1ª Seção.

Acresça-se, pois, uma última pergunta: um entendimento plasmado em dois julgamentos da mesma Turma, ainda que replicado em duas dezenas de decisões monocráticas, representa a posição dominante do STJ, a exigir a modulação dos efeitos da decisão que o altere? À exceção de uma reviravolta sobre o que a própria 1ª Seção entende como sendo jurisprudência dominante, não parece haver qualquer justificativa para se modular os efeitos da decisão em construção, a despeito das milhares de ações açodadamente interpostas.

Em verdade, as evidentes fragilidades da tese ainda não haviam sido examinadas pelo STJ com a profundidade que um julgamento pelo rito dos recursos repetitivos permite, como se percebe do substancioso voto proferido pela relatora, a ministra Regina Helena Costa, no início do julgamento do Tema 1.079, que, no mérito, entendeu pela inexistência da limitação pretendida.

A suspensão do julgamento pelo auspicioso pedido de vista do ministro Mauro Campbell Marques acaba permitindo a continuidade e a qualificação do debate, principalmente quanto à sugerida modulação dos efeitos da decisão. As perguntas ora suscitadas – retóricas que sejam – poderiam ser enfrentadas por quem defende a existência da limitação, mas provavelmente não serão.

Apesar de ainda pendente de definição final, a questão parece se encaminhar para um resultado que, muito além de preservar os essenciais serviços prestados à sociedade pelos terceiros destinatários das contribuições, cujo financiamento encontra-se efetivamente sob risco, mantém a jurisprudência pacífica do STJ e a própria lógica e coerência que se espera da interpretação do ordenamento jurídico.