Hoje, sexta-feira, é dia de mais um capítulo do projeto “Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Professor!”, dedicado a responder às perguntas dos leitores do JOTA, sob a coordenação acadêmica do professor, advogado e consultor trabalhista, Dr. Ricardo Calcini.
O projeto tem periodicidade quinzenal, cujas publicações são veiculadas às sextas-feiras. E a você, leitor(a), que deseja ter acesso completo às dúvidas respondidas até aqui pelos professores, basta acessar o portal com a #pergunte ao professor.
Neste episódio de nº 116 da série, a dúvida a ser respondida é a seguinte:
Pergunta ► Qual é hoje a segurança jurídica no trabalho intermediado por plataformas digitais?
Resposta ► Com a palavra, a professora Viviane Lícia Ribeiro.
Não é de hoje que se verifica o elevado número de reclamações trabalhistas e até mesmo de ações civis públicas envolvendo a questão do trabalho em plataformas digitais, uma vez que essa modalidade de trabalho não possui regulamentação legislativa, ainda que seja necessária e urgente.
Quando as principais empresas de plataformas digitais passaram a difundir seus serviços no Brasil, é sabido que não houve nenhuma aprovação legislativa em relação ao trabalho a ser realizado por milhares de trabalhadores brasileiros, principalmente após o advento da pandemia da Covid-19.
Inicialmente, a ideia era a de que o trabalho prestado por intermédio das plataformas digitais fosse para além da resposta ao elevado índice de desemprego, como também que possibilitasse aos trabalhadores alcançarem bons rendimentos com maior autonomia na prestação dos serviços.
Contudo, a realidade se mostrou bem diferente da ideia original difundida. Viu-se na prática que esses trabalhadores seriam expostos a diversos riscos e imprevisibilidades durante suas jornadas de trabalho, e que a prometida flexibilidade seria, porém, a ausência de qualquer proteção social e trabalhista.
Diversas foram as manifestações organizadas por trabalhadores digitais reivindicando melhores condições de trabalho, com destaque ao breque dos apps realizado pelos entregadores em 2020. Ainda assim, o cenário permaneceu desfavorável aos trabalhadores em plataformas digitais ensejando novas reclamações trabalhistas em face das empresas de plataformas digitais.
Os primeiros conflitos originaram-se em 2015 e, desde então, quase nove anos após a jurisprudência em torno do assunto, ainda hoje não foi pacificada na Justiça do Trabalho. Ao contrário, nesse momento nem sequer se pode dizer qual seria a Justiça competente para o julgamento de tais reclamações. Há uma insegurança jurídica ainda maior com o passar do tempo, principalmente após o recente entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto.
Frise-se que se, anteriormente, se discutia qual seria o futuro da jurisprudência no âmbito da Justiça do Trabalho, doravante indaga-se não apenas o futuro da jurisprudência nos Tribunais, mas também o próprio ramo do Poder Judiciário competente para o julgamento de tais reivindicações.
Recentemente, a 1ª Turma do STF não apenas cassou decisão exarada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3) que havia reconhecido vínculo trabalhista entre determinado motorista de aplicativo e a Cabify, bem como entendeu que o motorista tem um sistema de trabalho semelhante ao do trabalhador autônomo por ter liberdade de escolha de seu horário e tempo de trabalho.
Afirmou a Suprema Corte, ainda, que a Constituição Federal permite formas de trabalho diversas das regulamentadas pela Consolidação das Leis do Trabalho, e, como base em tal premissa, não apenas derrubou o reconhecimento de vínculo, mas também enviou recado à Justiça do Trabalho para que cumpra o entendimento do Supremo Tribunal Federal quando discutida a “uberização” das relações de trabalho, inclusive, com expedição de ofício ao CNJ.
É certo que a pretensão dessa reflexão não é questionar acertos ou não dos fundamentos relativos à inexistência de vínculo empregatício reconhecido pelo STF, mas o esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho para o conhecimento das relações que envolvem o trabalho em plataformas digitais.
O que se questiona é, essencialmente, se a Excelsa Corte, quando do julgamento da ADC 48, da ADPF 324, do RE 958.252 (Tema 725), da ADI 5.835 e do RE 688.223 (Tema 590), firmou efetivo posicionamento no sentido de que a Constituição Federal permite formas alternativas de relação de trabalho? E, mais, como poderia no julgamento da Reclamação Constitucional nº 59.795, decidida no dia 19 de maio de 2023, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, ter se afirmado que a competência material para a análise da validade (ou não) do contrato firmado entre as partes seria da Justiça Comum Estadual?
Reproduz-se o disposto no inciso I do artigo 114 da Constituição Federal:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;”
Qual seria, portanto, o fundamento hábil a retirar da Justiça do Trabalho sua competência para o julgamento dessa nova realidade laboral? Estaria ocorrendo um “alargamento” da jurisprudência, já que o STF considera ser válido qualquer contrato sob o argumento da terceirização? E se no caso concreto houver fraude na referida contratação?
Aliás, importante relembrar que um dos precedentes citados pelo ministro Alexandre de Moraes, para inclusive justificar sua decisão, foi o voto proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso, o qual expressamente ressalva o reconhecimento da terceirização nos casos de ocorrência de fraude.
Por isso, como seria possível a milhares de pessoas que prestam serviços por meio das plataformas digitais terem a análise no caso concreto de suas reais condições de trabalho se a Justiça Laboral não mais seria competente? Na prática, não se está a impor a vedação do acesso ao Poder Judiciário? E, ainda, como ficará a competência material para se analisar eventual adoção de fraude e consequentemente existência de vínculo empregatício dos profissionais terceirizados ou “pejotizados”?
A depender da resposta a tais perguntas, se terá como conclusão de que as decisões do próprio Supremo Tribunal Federal estarão, em realidade, afrontando o artigo 114 da CF, tornando letra morta um dos pilares da Carta da República reconstruído após a EC/2004 que reestruturou o Poder Judiciário.
A se manter a longo prazo esse entendimento do STF, por certo grande parte dos empregadores passará a adotar um caminho de contratar profissionais — não apenas os que laboram por intermédio de plataformas digitais — por contratos civis como forma de fugir das obrigações trabalhistas e das responsabilidades fiscais e previdenciárias daí decorrentes.
Invocam-se aqui as razões da criação da própria existência do Direito do Trabalho, como aquela referida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao afirmar que “o trabalho não é uma mercadoria”, cuja força de trabalho deve ser valorizada e ser sempre protegida, e não ignorada.
Em arremate, cada vez mais se percebe a necessidade de analisarmos que o trabalho do ser humano não é uma mercadoria disposta à negociação, tampouco pode ser reputada como uma mercadoria qualquer. É justamente a força de trabalho dos trabalhadores plataformizados que necessita dos princípios imanentes de uma Justiça Especializada para a resolução desses conflitos, diante da omissão legislativa que, apesar de contar com centenas de projetos legislativos, não possui até os dias de hoje lei a respeito do assunto.