Qual é a justificação das agências reguladoras?

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A justificação da atividade regulatória do Estado a partir de agências reguladoras costuma partir, especialmente, de argumentos econômicos. Em geral, são aduzidas as tradicionais falhas de mercado decorrentes da falta de concorrência (monopólios), da falta de direitos de propriedade (bens públicos, externalidades), da falta de informação (risco moral, seleção adversa), entre outros argumentos, como a necessidade de “racionalizar” a intervenção regulatória.

Na maior parte dos estudos, a justificação para a regulação fica no plano abstrato, em sentido amplo, para fundamentar a existência da competência regulatória em si, de forma geral, sem uma maior preocupação sobre quais são as razões apresentadas em concreto, no dia a dia, para a aprovação de normas nas agências reguladoras. A esse segundo tipo de justificação se dedica o texto.

O desinteresse por essas razões efetivamente apresentadas pelas agências reguladoras pareceria vir da percepção de que os detalhes de uma iniciativa regulatória (a própria definição da agenda regulatória) refletiriam mais as forças políticas interessadas do que propriamente uma decisão fundada em razões, justificada racional e argumentativamente. Há um senso comum de que as razões publicizadas pelas agências reguladoras não correspondem à real motivação para as escolhas regulatórias.

Ocorre que a promessa do Estado Administrativo era a do exercício do poder com base no conhecimento, na submissão do poder à razão, em trazer competência à política. Para isso, as decisões das agências reguladoras precisam contar com razões, pois tal argumentação é a base para aferir a racionalidade e a razoabilidade das decisões regulatórias.

É bem verdade que a argumentação das agências reguladoras não é o único meio para isso. Na verdade, inclusive, esse caminho tem sido o menos utilizado para o exame das decisões regulatórias. Não se costuma fazer uma análise mais profunda sobre a adequação das razões apresentadas em cada caso. 

Nos trabalhos acadêmicos, predominam abordagens mais procedimentais, em que a racionalidade da regulação fica associada à adoção de etapas ou requisitos formais, inerentes à lógica de um “processo” regulatório.

Costuma-se perguntar: Houve audiência pública? Houve análise de impacto regulatório (AIR)? A minuta ou proposta de ato normativo foi submetida à consulta dos interessados? A agência reguladora apresentou seu posicionamento quanto às críticas e sugestões encaminhadas pelos mecanismos de participação social? O processo decisório atendeu ao que determina a Lei Geral das Agências Reguladoras, Lei 13.848/2019? E só.

A procedimentalização da decisão regulatória é importante, não se nega. A governança é pressuposto elementar de qualquer sistema regulatório. O processo regulatório de fato precisa contar com etapas claras relacionadas às tarefas de planejamento, elaboração, implementação, fiscalização, monitoramento, avaliação e revisão das intervenções regulatórias.

Sem prejuízo disso, reivindica-se aqui que o processo regulatório não se limita ao cumprimento dessas fases, nem pode descuidar da dimensão argumentativa presente em cada uma delas. As razões substantivas apresentadas pelas agências reguladoras cumprem um papel igualmente importante ao dos procedimentos formais. O conteúdo da regulação não se legitima de forma automática só pelo atendimento do “processo”. É preciso que haja boas razões. Às boas práticas regulatórias ainda falta incorporar a prática de dar razões.

De acordo com o art. 5º da Lei 13.848/2019, a agência reguladora precisa indicar os “pressupostos de fato e de direito” que determinam suas decisões, inclusive a respeito da edição ou não de atos normativos. A literatura extrai dessa previsão um “dever de motivação” consistente na obrigação de fundamentar o processo de tomada de decisão, como condição de validade. A partir da motivação, torna-se possível a verificação dos interesses vinculados.

Ocorre que, no mundo real, as razões são fragmentadas e as razões para uma não atuação da agência pouco aparecem. Além disso, tal como vazada nos termos legais, a indicação meramente formal das razões fáticas e jurídicas da decisão é insuficiente para atender o reclamo no sentido de que as escolhas das agências reguladoras sejam justificadas.

Especialmente nos casos em que a regulação interfira em direitos fundamentais, é preciso que o raciocínio regulatório discorra minimamente sobre a eventual não atuação regulatória (para mostrar que de fato a regulação é a melhor maneira de resolver o problema), sobre as alternativas descartadas e demonstre que foi escolhido o meio menos restritivo à liberdade individual. De preferência, todas as considerações devem ter base em teorias sólidas ou evidências empíricas.

Outros dispositivos legais, como a Lei de Proteção e Defesa do Usuário de Serviços Públicos, Lei 13.460/2017, art. 5º, inciso IV, ainda estabelecem a diretriz de “adequação entre meios e fins”, sendo vedada a imposição de exigências, obrigações, restrições e sanções não previstas na legislação. Essa “ponderação regulatória” deve constar da justificação apresentada pela agência.

Tais tarefas precisam ser norteadas pela “razoabilidade”, como determina o art. 2º da Lei do Processo Administrativo Federal, Lei 9.784/1999, e pela “simplificação” de processos e procedimentos, de preferência pela aplicação de soluções tecnológicas. A regulação deve se abster de exigir trâmites, documentos ou expedientes além do estritamente necessário, de forma que escolhas regulatórias desse tipo precisam contar com uma justificação.

Para a fundamentação regulatória ficar completa, temas como equidade entre gêneros e impactos sobre o clima também precisariam ser considerados, como acontece em países como a Noruega, por exemplo. Tudo isso em meio a um processo em contraditório, como deve ser em qualquer normatização, seja perante as agências reguladoras, seja nos parlamentos.

Como se vê, no nível ideal, a justificação regulatória alcançaria preocupações além das tradicionalmente fixadas na Circular A-4 do Office of Management and Budget (OMB) nos Estados Unidos, cujo foco – mesmo com a atualização do dia 9 de novembro – se volta sobretudo para análises de custo-benefício, de custo-efetividade, dos efeitos distributivos (alocação) dos custos e benefícios implicados na regulação, etc.

Idealmente, as agências reguladoras precisariam contemplar elementos não monetizados e razões não econômicas para e na regulação (como valores democráticos, de justiça, segurança, direitos e liberdades individuais, dignidade humana), pois, na prática, as agências reguladoras já fazem escolhas regulatórias de cunho (ou com repercussão) moral. Assim, a justificação se tornaria mais robusta.

As razões oportunizadas por mecanismos como AIR, consulta, agenda, etc. não são suficientes como razões justificadoras da regulação. O foco deles é mais procedimental, e menos substancial. Não se trata de um problema de qualidade ou inefetividade de tais mecanismos, por mais que na prática esses costumem falhar na apresentação de razões (ou essas não são claras). Tampouco a questão diz respeito ao comportamento estratégico dos atores envolvidos no processo regulatório, fragilizando a ideia da procedimentalização.

Sem pretender desmerecer todas vantagens associadas à AIR, cuja adoção de fato implica uma “revolução”, a questão é simplesmente a de que a AIR (mesmo considerando seus diversos tipos) oferece um protótipo incompleto de razões para a regulação.

Desde uma perspectiva argumentativa, importam também as razões para regular, as razões para regular de uma determinada forma e as razões sobre a finalidade a ser alcançada em cada caso (isto é, se os próprios objetivos da regulação específica estão justificados). A exigência de justificação da regulação não se limita a uma perspectiva instrumental (os melhores meios) que deixa de problematizar os próprios pressupostos subjacentes em cada caso. 

A crença de que a procedimentalização é suficiente para a regulação das agências reguladoras é tão equivocada quanto a de que – transplantando para a lógica de elaboração de leis – o mero atendimento das fases do processo legislativo constitucional é o bastante para a boa legislação. 

O giro argumentativo inerente à construção de um Estado Constitucional coloca luzes no reason-giving e as agências reguladoras não são exceção.

A ideia é a de que, se agências reguladoras são induzidas a apresentar razões sobre todas essas questões, tal obrigação será levada a sério. Não se desconhece a literatura norte-americana de que esse tipo de esperança costuma fracassar na prática, porque as exigências regulatórias (como relatórios de impacto) acabam sendo instrumentalizadas contra a própria regulação. No entanto, esse parece ser um argumento fraco para libertar as agências reguladoras do dever de fundamentação.

É necessário que a argumentação das agências reguladoras se encaixe em (ou possa ser reconduzida a) um tipo específico de esquema de justificação. Trata-se de estrutura argumentativa semelhante à que os legisladores precisariam atender para que se possa reputar que a legislação aprovada está devidamente justificada desde uma perspectiva legisprudencial. Tal esquema atende também, de forma mínima, o que se espera de uma argumentação regulatória.

Tal esquema de justificação legislativo-regulatória é o seguinte:

P1 Premissa da intervenção legislativa/regulatória/normativa

P1a Subpremissa de descrição diagnóstica

P1b Subpremissa de valoração diagnóstica

P1c Subpremissa de oportunidade

P2 Premissa de objetivos

P3 Premissa de idoneidade e suficiência

P4 Premissa de seleção

Portanto,

C Deve ser aprovada a disposição D

A partir do esquema acima, a investigação sobre se as decisões legislativas, regulatórias ou normativas em geral contam com justificação satisfatória passaria pelo exame do conteúdo das razões apresentadas durante o processo para cada uma das premissas acima indicadas. Trata-se de verificar se, pelo teor das razões encontradas, estão satisfeitos substancialmente os conteúdos seguintes:

P1 Se é necessária uma intervenção legislativa/regulatória/normativa para mudar uma determinada situação considerada problemática

P1a Se existe a situação em questão, os fatos que a definem

P1b De que forma a situação afeta negativamente valores importantes e quais

P1c Se a intervenção legislativa neste momento está justificada

P2 Se intervenção legislativa persegue os objetivos O1, O2, On

P3 Se disposição D contribuirá para os objetivos O1, O2, On

P4 Se nenhuma outra disposição D’, D’’ proposta para contribuir aos objetivos O1, O2, On é preferível à luz dos valores em jogo

Portanto,

C Deve ser aprovada a disposição D

Acredita-se que percorrer essas etapas metodológicas com vistas à identificação, análise e avaliação das justificações legislativas é necessário ao teste de racionalidade da regulação e, eventualmente, também poderia ensejar o seu controle judicial a partir de uma nova perspectiva. O foco nas razões apresentadas pelas agências reguladoras pode facilitar a revisão judicial, evitando que esta avance em tecnicismos do procedimento administrativo-regulatório, cujas eventuais variações podem ser irrelevantes para a decisão. 

Por exemplo, uma regulação não necessariamente será arbitrária só pela falta de AIR, mas há grandes chances sê-lo caso faltem razões substanciais.

No entanto, o padrão da revisão judicial das decisões regulatórias tem sido, essencialmente, a chamada Doutrina Chevron, cujos testes se dirigem para verificar se a agência reguladora tem competência para editar o ato normativo, a partir do exame dos termos da delegação legislativa. Os tribunais se atêm a verificar: 1) se existe autorização legislativa; e 2) se a escolha regulatória da agência é razoável, plausível ou possível dentro do quadro da permissão legislativa e constitucional.

Nesses termos, a razoabilidade da atuação da agência é aferida basicamente a partir do cotejo entre o assunto regulado e as disposições legais. Na prática, limita-se a comprovar se a decisão regulatória foi um exercício regular da autoridade regulatória, sem que se avance no exame da fundamentação utilizada pela agência in concreto, o que – entende-se aqui – é tão importante quanto, sem prejuízo do devido processo administrativo-normativo.

Todos os envolvidos – o Estado, as agências reguladoras, os indivíduos e tribunais – seriam beneficiados com a argumentação das agências reguladoras nos moldes propostos. Dar razões é, sem dúvidas, uma das melhores (senão a melhor entre as) boas práticas regulatórias. 

Quando essa prática for real, será mais fácil responder à pergunta: Quais são as razões que as agências reguladoras apresentam para a regulação?