A virada de ano foi agitada para a função pública. Dentro e fora do Estado, os debates envolveram temas como: Concurso Nacional Unificado, reorganização das carreiras públicas, PEC da Reforma Administrativa, reajuste salarial para o funcionalismo e greve no serviço público.
São assuntos complexos, com impacto direto e indireto sobre servidores e cidadãos, e cuja boa compreensão requer tanto o conhecimento da gestão pública como o manejo das normas jurídicas que estruturam o nosso funcionalismo.
É com esse espírito que o presente artigo inaugura o segundo ano da coluna Função Pública, de autoria do Núcleo de Inovação da Função Pública, da Sociedade Brasileira de Direito Público, em parceria com o JOTA. A coluna busca contribuir com o debate sobre a função pública, sob uma ótica jurídica, a partir da análise de problemas reais e das propostas concretas de solução.
Nosso diagnóstico é que o debate em torno da modernização da função pública, em alta nos dias de hoje, carece de estudos jurídicos mais aprofundados. Nossa aposta é que o direito tem sua parcela de contribuição a dar para alcançarmos um serviço público mais democrático, responsivo e eficiente.
Para iniciarmos os trabalhos, este artigo busca chamar a atenção para três desafios a serem enfrentados no âmbito da função pública em 2024, propostos na forma de perguntas: Como reformar o RH do Estado?, Como promover a diversidade no setor público? e Como selecionar pessoas para o serviço público?.
Como reformar o RH do Estado?
Importante desafio para o ano de 2024 é avançarmos na discussão sobre como reformar o RH do Estado. Qual seria o caminho mais adequado para a modernização do arcabouço jurídico que estrutura o nosso funcionalismo: reformas constitucionais ou legais?
A discussão ganhou grande destaque com a PEC da Reforma Administrativa, que “altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa”. A proposta foi alvo de numerosas críticas negativas já em sua versão original. Houve ceticismo quanto à estratégia do governo à época de reformar o RH do Estado inserindo mais dispositivos sobre o tema na Constituição – o que costuma matar qualquer reforma.
O atual texto da Constituição parece conferir amplo espaço para inovações legais, e até regulamentares, no regime jurídico de pessoal no setor público, em relação aos mais diversos temas: avaliações da atuação funcional, critérios de promoção, regras sobre recebimento de parcelas indenizatórias etc. (sobre isto, ver estudo do Núcleo de Inovação da Função Pública – sbdp).
No debate público parece ganhar força o entendimento de que reformas por meio de lei, e não de emendas constitucionais, são um caminho seguro para a modernização do setor público, sobretudo no que diz respeito a regimes jurídicos de pessoal. Nesse sentido, em entrevista ao JOTA, a ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, propôs a substituição da PEC da Reforma Administrativa por um conjunto de projetos de lei.
Contudo, propostas de reformas do RH do Estado por meio de emendas constitucionais continuam a aflorar – a exemplo do próprio retorno da PEC da Reforma Administrativa à mesa de discussões.
É necessário avançarmos na discussão acerca de quais os caminhos jurídicos mais adequados para a modernização da gestão de pessoas no setor público. Em 2024, temos um encontro marcado com esse desafio não apenas no âmbito da PEC da Reforma Administrativa, mas também na discussão de temas como avaliação de desempenho no serviço público e reestruturação das carreiras.
Como promover a diversidade no setor público?
Outro desafio para a função pública no presente ano é aprofundar o debate sobre promoção da diversidade dentro do Estado. O Brasil é um país muito diverso, mas essa realidade não é refletida no serviço público. Em termos étnico-raciais e de gênero, por exemplo, ele não representa o cenário nacional.
Segundo dados de 2020 do Atlas do Estado Brasileiro, pessoas negras ocupam apenas 13% das posições na carreira de procurador federal e 12% da carreira de auditor, por exemplo. Ainda que as mulheres sejam maioria no serviço público, elas ganham 25% a menos que os homens, considerados os três níveis federativos, pois elas têm baixa representação em cargos melhor remunerados e em espaços de liderança (cargos comissionados).
Medidas recentes, de importância prática e simbólica, têm buscado reverter esse quadro, e promover a diversidade no setor público. É o caso, por exemplo, do Decreto Federal 11.443/2023, que determina o preenchimento, por pessoas negras, de no mínimo 30% dos cargos em comissão e funções de confiança na administração pública federal direta, autárquica e fundacional. A norma prevê, ainda, o estabelecimento de percentual mínimo dessas vagas a ser preenchido por mulheres.
Estudo desenvolvido pelo Núcleo de Inovação da Função Pública, em parceria com o Movimento Pessoas à Frente, identificou que o principal instrumento de promoção da diversidade utilizado é a reserva de vagas em processos seletivos. Contudo, outras formas de promoção têm sido adotadas, não apenas no âmbito da seleção, mas também no que se refere à própria vida funcional dos agentes públicos – por exemplo, a partir do combate a discriminações no serviço público.
A diversificação dos instrumentos de promoção da diversidade tem se mostrado necessária, inclusive, em vista da efetividade demonstrada pelas políticas de reserva de vagas – que parecem requerer complementação a partir também de outros instrumentos.
Em 2024, precisamos avançar nas discussões sobre como promover a diversidade no setor público, inclusive para além das reservas de vagas em processos seletivos.
Como selecionar pessoas para o serviço público?
Um terceiro desafio para a função pública em 2024 é desenvolver o debate sobre como selecionar pessoas para o serviço público, sobretudo no que diz respeito à seleção por meio de concursos públicos.
Pesquisas em âmbito internacional mostram que o concurso público é ferramenta efetiva para melhorar a qualificação, mitigar influências políticas, reduzir a corrupção e trazer maior motivação no funcionalismo público.
No Brasil, contudo, estudos recentes têm apontado para disfuncionalidades nos concursos. Isso porque nosso atual modelo: “supervaloriza títulos educacionais e conhecimentos teóricos em detrimento de habilidades simplesmente essenciais de muitos cargos” (Oliveira, Castro Júnior e Montalvão, 2022); é “baseado no domínio simples de conteúdos, em detrimento do modelo de competências que pressupõe a mobilização do conhecimento para a resolução de problemas” (Coelho e Menon, 2018); e “não apresenta para o candidato as habilidades ou aptidões que precisa ter ou precisaria desenvolver para seu trabalho e tampouco considera tais características como partes integrantes do processo seletivo” (Fontainha e outros, 2015).
Tais diagnósticos têm impulsionado o debate sobre como aprimorar as seleções de pessoal. Uma das propostas para enfrentar esse cenário é o Projeto de Lei Nacional de Modernização dos Concursos Públicos (PL 2258/2022).
O PL 2258 prevê que “o concurso público tem por objetivo a seleção isonômica de candidatos fundamentalmente por meio da avaliação dos conhecimentos, das habilidades e, nos casos em que couber, das competências necessários ao desempenho com eficiência das atribuições do cargo ou emprego público, assegurada, nos termos do edital do concurso e da legislação, a promoção da diversidade no setor público”.
“Conhecimentos” é o “domínio de matérias ou conteúdos relacionados às atribuições”; “habilidades”, a “aptidão intelectual ou física para execução prática de atividades compatíveis com as atribuições”; e “competência”, os “aspectos comportamentais vinculados às atribuições”.
Seja por meio do PL 2258, ou de outras medidas, em 2024 precisamos avançar no debate sobre como selecionar pessoas para o serviço público, possibilitando seleções mais efetivas e adequadas para as necessidades da administração pública.
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No ano de 2024 a função pública enfrentará diversos desafios. A boa notícia é que, como costuma ocorrer com qualquer desafio, também teremos oportunidades de avanços. É a chance de alcançarmos uma função pública mais plural, no âmbito das pessoas que a exercem, das ideias que a informam e das instituições que a instrumentalizam. Nessa caminhada, continuem contando conosco.