Os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) representam uma forma inovadora e atraente de financiamento imobiliário, permitindo que empresas captem recursos diretamente de investidores, oferecendo como garantia, entre outros ativos imobiliários, os recebíveis de aluguéis.
Essa estrutura geralmente envolve um locatário de alta solvência, que garante a atratividade e a segurança do investimento. No entanto, o recente caso da Vibra (antiga BR Distribuidora) expôs significativas vulnerabilidades neste modelo, as quais podem ter implicações profundas tanto para os atuais quanto para os futuros investidores.
O CRI em questão foi estruturado a partir de um contrato de locação de um edifício que foi “built to suit” (isto é, construído sob medida) para a Vibra. A construtora, proprietária do imóvel, utilizou o crédito decorrente do contrato de locação de longo prazo como lastro para a emissão dos CRIs. O mercado, por seu turno, considerou que o título era seguro pois estava baseado no risco de crédito da Vibra, devedora do aluguel. Ocorre que recentemente a construtora se viu em dificuldades financeiras e um dos seus credores executou a dívida e levou o imóvel a leilão judicial, que acabou sendo adquirido pela própria Vibra.
Com isso, a Vibra alegou que teria ocorrido o fenômeno da confusão, já que locador e locatário passaram a ser a mesma pessoa e que o contrato de aluguel, consequentemente, teria sido extinto. A empresa decidiu então cessar os pagamentos de aluguel. Desse modo, o ativo que lastreava os CRIs teria, de uma hora para a outra, desaparecido, afetando mais de mil investidores, entre pessoas físicas e institucionais. A situação gerou incerteza e expôs a fragilidade dos CRIs quando o ativo subjacente são créditos decorrentes de um contrato de aluguel.
A Vibra defende que, como não foi parte das operações que resultaram na emissão dos CRIs, não deveria ser responsabilizada pela manutenção dos pagamentos. Sabe-se que, diante dessa posição, a securitizadora que emitiu os CRIs levou a questão para discussão em um processo de arbitragem perante a Câmara de Comércio Internacional, em Paris, envolvendo tanto a construtora quanto a Vibra.
O procedimento arbitral está sendo tratado com confidencialidade e não se conhecem ainda muitos detalhes do caso. É possível supor que a securitizadora esteja argumentando, em defesa da posição dos investidores, que, nesse caso, a “relatividade dos contratos” (o princípio segundo o qual o contrato somente é oponível às partes que o celebraram) teria que ser, ela própria, “relativizada” por força do princípio da boa-fé previsto no código civil.
Para tanto, seria necessário argumentar que a Vibra teria se beneficiado diretamente da operação de emissão dos CRIs, já que, como ela tinha conhecimento, foi essa operação que viabilizou o contrato de locação atípico que veio a celebrar e no qual tinha grande interesse. Nessa mesma linha, poder-se-ia defender que o contrato de locação e os documentos de emissão dos CRIs fazem parte de uma mesma operação estruturada e que não seria condizente com a boa-fé a empresa desconsiderar agora os interesses dos portadores dos CRIs apenas porque não interveio formalmente nos documentos de emissão. Mesmo sendo um terceiro em relação aos CRIs, ela teria responsabilidade por respeitar os contratos e pelo impacto de suas decisões nos investidores.
Os titulares dos CRIs têm legitimidade, em minha opinião, para solicitar a admissão nesse procedimento arbitral como terceiros interessados, sendo essa medida altamente recomendável para a proteção de sua posição, de forma a não depender apenas da atuação da securitizadora, cujos interesses podem não estar inteiramente alinhados aos dos investidores.
O desfecho desse caso pode influenciar significativamente a percepção de segurança dos CRIs. Para futuras emissões, é crucial que os devedores do ativo lastro, como a Vibra no presente caso, intervenham nos documentos de emissão, comprometendo-se explicitamente a proteger sua higidez, tornando desnecessário recorrer a princípios jurídicos mais abertos, como o da boa-fé. O fato de essa precaução, aparentemente, não ter sido tomada neste caso, por outro lado, juntamente com outras deficiências que ainda estão sendo apuradas, lança dúvidas sobre a qualidade da estrutura contratual adotada e pode vir a ser base para o questionamento dos responsáveis por sua concepção e adoção, algo que confirma a afirmação feita no sentido de que investidores e securitizadora não estão completamente alinhados nesta causa.
O caso Vibra serve como um alerta importante para todos os envolvidos no mercado de CRIs. A transparência e a segurança jurídica são fundamentais para a manutenção da confiança dos investidores. Assim, é essencial que as futuras estruturas de CRIs sejam projetadas com mecanismos mais robustos para proteger os investidores, garantindo que situações similares sejam mitigadas ou idealmente evitadas. Com práticas apropriadas e precauções claras, o mercado de CRIs pode continuar a prosperar como uma ferramenta valiosa de financiamento imobiliário.