O Congresso Nacional tem uma atual legislatura integrada por uma sólida configuração conservadora, composta por muitos parlamentares aliados ou simpatizantes do ex-presidente Jair Bolsonaro. O movimento político originado a partir do protagonismo do ex-presidente, o bolsonarismo, estabeleceu-se como uma forte força política no cenário brasileiro e nos canais institucionais. Diante desse cenário, já era previsível que surgissem movimentos de resistência parlamentar com relação a pautas progressistas e democráticas, assim como era possível antever tentativas de reinterpretação do que ocorreu durante a gestão 2019-2022.
Essa conjuntura explica os frequentes movimentos de reação dentro do Poder Legislativo diante das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), como observado nos casos das propostas legislativas que vedam o casamento homoafetivo, criminalizam o porte de drogas em qualquer quantidade e limitam as decisões monocráticas na corte. Ocorre que essa força política conservadora está em constante articulação na tentativa de controlar a narrativa do recente histórico do bolsonarismo, visando, principalmente, amenizar os crimes cometidos contra as instituições democráticas.
Desde quando se percebeu o arrefecimento das possibilidades de reeleição de Bolsonaro, parte do quadro político já ensaiava a estratégia de perdão para o ex-presidente. As principais ferramentas levantadas foram aquelas que possibilitariam extinguir a eventual punibilidade penal, como a anistia, graça e indulto. O ex-presidente Michel Temer, por exemplo, invocou o instituto da anistia para defender a busca de um “pacto de harmonia nacional” entre governadores, parlamentares, presidente e organizações da sociedade civil.
Jair Bolsonaro, em seu governo, já havia se utilizado do indulto para o ex-deputado federal Daniel Silveira, que havia sido condenado criminalmente por tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer Poder da União ou dos estados (Ação Penal 1.044/DF). Sua posição apresentava uma estratégia de ampliar a campanha de questionamento do Poder Judiciário. O indulto foi derrubado pelo STF sob o argumento de que houve desvio de finalidade na norma editada.
Com relação à anistia, é importante destacar que o instituto extingue a punibilidade sobre determinado ato (art. 107, inc. II, Código Penal). A competência para concessão de tal medida é do Congresso Nacional (art. 48, inc. VIII, da Constituição de 1988). Conforme analisa Cezar Roberto Bitencourt, a anistia representa uma forma de atenuar os rigores excessivos das sanções penais, configurando-se como uma espécie de “esquecimento jurídico” do ato tipificado como crime. Uma vez concedida, ela não pode ser revogada (Tratado de Direito Penal: Parte Geral [arts. 1º a 120] 29. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 464). A anistia já foi protagonista de debates institucionais significativos no Brasil em momentos-chave, como no caso da ADPF 153. Diante desse histórico, a indagação que surge é: de que forma a anistia tem sido abordada no cenário público em 2023?
Ao utilizar o termo “anistia” nas ferramentas de busca de propostas legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado, com filtro temporal do ano de 2023, foi possível mapear 9 projetos de lei (3 propostas do Senado: PL 3338/2023, PL 3316/2023, PL 5064/2023 e 6 da Câmara: PL 2162/2023, PL 2671/2023, PL 2768/2023, PL 3312/2023, PL 3317/2023, PL 3352/2023). Os projetos de leis (PL’s) são orientados por dois eixos centrais, nos quais se busca: (1) perdoar crimes eleitorais das eleições de 2022; e, (2) perdoar as manifestações antidemocráticas e golpistas do final de 2022 até 8 de janeiro de 2023.
Os PLs demonstram backlash em relação a decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do STF. No TSE, as condenações de Bolsonaro por abuso de poder e uso eleitoreiro do aparato estatal geraram inelegibilidades do ex-presidente e, em um dos casos, do ex-ministro Braga Netto por 8 anos: até o momento, são 3 condenações. No STF, sob a condução do ministro relator Alexandre de Moraes, estão ocorrendo diversas condenações pelos crimes de abolição violenta do Estado democrático (art. 359-L) e golpe de Estado (art. 359-M). No mesmo sentido, o Relatório Final da CPMI dos Atos de 8 de janeiro de 2023 pede o indiciamento de Bolsonaro ao lado de militares, agentes públicos, agentes de segurança, parlamentares e outros indivíduos.
O panorama geral desse backlash do Legislativo demonstra como as vias institucionais oficiais estão tentando instrumentalizar a anistia para manter a relevância de Bolsonaro e possibilitar a oxigenação do bolsonarismo no espaço público e permitir maior espaço para o revisionismo e negacionismo dos atos antidemocráticos.
O PL 5064/2023, apresentado pelo senador e ex-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), argumenta que os órgãos de persecução penal não estão conseguindo individualizar as condutas dos “manifestantes” de 8 de janeiro, razão pela qual deve-se buscar anistiar todos. O PL 2162/2023 segue o mesmo teor ao pretender afastar os “manifestantes” desde de 30 de outubro de 2022 até a vigência da lei, se eventualmente aprovada.
Com argumentos semelhantes, o PL 2768/2023 busca a anistia do ex-parlamentar Daniel Silveira, que, conforme já salientado, havia sido beneficiado pelo indulto de Bolsonaro, o qual foi derrubado pelo STF. Já os PL 3316/2023, PL 5064/2023, PL 3312/2023, PL 3317/2023 e PL 3352/2023 buscam anistiar os crimes eleitorais cometidos na busca de uma suposta “pacificação social” da sociedade brasileira, em uma clara tentativa de apagar as condenações de Jair Bolsonaro no TSE. Já o PL 2671/2023 parece responder à decisão do TSE que estabeleceu a inelegibilidade do ex-deputado federal Deltan Dallagnol.
Dado o contexto, as anistias discutidas no Congresso Nacional pretendem provocar um esquecimento manipulado e abusivo para deturpar a memória dos fatos e possibilitar a gestação de novos projetos políticos do bolsonarismo e do radicalismo. Fica evidente que as anistias dos PLs mencionados estão desvirtuando os ideais de justiça e reparação institucional. Como expõe a professora Juliana Alvim, não existem motivos contextuais para criação de anistia para os atos de Bolsonaro. Pode-se adicionar que não existem motivos legítimos para anistiar as medidas do bolsonarismo.
É importante destacar que os projetos de lei apresentam narrativas com retóricas de esquecimento e distorções da realidade, além de inflamarem ações antidemocráticas como ataques ao Poder Judiciário. Na verdade, fica claro que são medidas de institucionalização do revisionismo e do negacionismo. Elas contribuem para o processo de degradação da democracia estabelecido pela Constituição de 1988.
Extinguir a punibilidade de crimes que atentaram contra o Estado brasileiro e suas instituições democráticas é atentar contra os próprios fundamentos da existência do Estado democrático de Direito. Ao contrário do que objetivam os PLs, responsabilizar é o caminho para resiliência das instituições, não a anistia.