A proposta de lei que fixa normas gerais para concursos públicos em âmbito nacional (Projeto de Lei n. 2258/2022), objeto de artigo nesta coluna, veda “em qualquer fase ou etapa do concurso público a discriminação ilegítima de candidatos, com base em aspectos como idade, sexo, estado civil, condição física, deficiência, etnia, naturalidade, proveniência ou local de origem.” (art. 2º, § 4º).
O leitor pode se perguntar: esse dispositivo não é óbvio? Será mesmo necessário ter esse tipo de previsão em uma lei geral dos concursos públicos?A Constituição Federal não é suficiente para impedir discriminações ilegítimas. Embora determine o que parece “senso comum”, o dispositivo é necessário.
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Com mais de 5.500 municípios no Brasil, todos competentes para promover concursos públicos, e muitas carreiras no serviço público, cada qual com suas peculiaridades, os editais dos concursos não são meros instrumentos organizadores de um certame. Ou seja, não são instrumentos politicamente neutros, razão pela qual pesquisas afirmam que os “editais expressam uma ideologia”.
Se não é possível fazer um estudo profundo nesse universo dos editais para comprovar a afirmação, pesquisa rápida no Supremo Tribunal Federal (STF) – que analisa uma parcela pequena de casos envolvendo editais de concurso – já fornece uma fotografia dos tipos de discriminações ilegítimas.
Os casos mais recentes são do final de outubro.
Na ADI 7.433, requer-se a declaração de inconstitucionalidade de dispositivo que limita a 10% a participação de mulheres nos quadros da Polícia Militar do Distrito Federal. Após a concessão de medida cautelar pelo ministro Cristiano Zanin, suspendendo concurso em andamento até a análise do mérito, os envolvidos no processo celebraram acordo para que o certame continue, mas sem a limitação de sexo. O acordo foi homologado pelo relator, mas a ação ainda aguarda decisão definitiva.
Já nas ADIs 7500, 7501 e 7502, propostas pela Procuradoria Geral da República (PGR), atacam-se dispositivos de leis das Forças Armadas que expressamente fazem distinção em desfavor das mulheres (caso da Marinha), permitem que ato infralegal o faça (caso da Aeronáutica) ou deixam espaço interpretativo para este tipo de distinção (caso do Exército). Os casos ainda não tiveram despacho inicial até o momento da publicação deste artigo.
Para além desses exemplos, em que os processos ainda estão em etapas iniciais, há casos já decididos pelo Supremo em que se reconheceu a ocorrência de discriminações ilegítimas de candidatos.
Recentemente, o STF assentou que a suspensão dos direitos políticos em razão de condenação criminal transitada em julgado não impede a nomeação e posse de candidato aprovado, desde que o ilícito penal não seja incompatível com a função a ser ocupada no serviço público (Tema 1.190 – RE 1.282.553). Em sentido semelhante, há algum tempo o STF firmou o entendimento de que não é legítimo restringir a participação de candidato que responda a inquérito ou ação penal sem que exista previsão legal (Tema 22 – RE 560.900).
Tampouco é legítimo, se não houver justificativa com base na natureza das atribuições, estabelecer limite de idade para a inscrição em concurso público (Tema 646 – ARE 678.112). Salvo situações excepcionais, tatuagem também não é razão para impedir a ocupação do cargo (Tema 838 – RE 898.450).
Além disso, o Supremo já reconheceu que candidatos estrangeiros têm direito à nomeação para cargos de professor, técnico e cientista em universidades e instituições de pesquisa científica e tecnológicas federais, salvo se a restrição de nacionalidade busque preservar o interesse público e for justificada, sendo cabível a sua apreciação pelo Judiciário (Tema 1032 – RE 1.177.699).
Por outro lado, o STF reconhece a existência de discriminações legítimas em concursos públicos, notadamente quando são benéficas a determinados grupos de candidatos. Assim, o Tribunal entende que é constitucional que teste de aptidão física seja remarcado para candidatas grávidas independentemente de previsão no edital (Tema 973 – RE 1.058.333). Do mesmo modo, admite-se a realização de prova em data e horário distintos do previsto em edital por motivo de crença religiosa, desde que respeitada a razoabilidade, se preserve a igualdade, e não haja ônus desproporcional à Administração (Tema 386 – RE 611.874).
As teses do Supremo aqui apontadas fixam algumas regras gerais, mas deixam espaço para que a entidade organizadora do concurso público estabeleça, com motivo, alguma restrição. O motivo de tal restrição, contudo, não escapa da apreciação do Judiciário, que pode reconhecer a ilegitimidade da discriminação.
Vê-se que esse é o teor do dispositivo previsto no PL 2258/2022 que veda descriminações ilegítimas de qualquer natureza. Portanto, sua presença no projeto que fixa normas gerais para concursos públicos é tanto necessária quanto compatível com a história jurisprudencial do Supremo.