A virada do ano foi marcada pela publicação de leis que restringem o porte e o uso de celulares e outros dispositivos eletrônicos portáteis em escolas, tanto em âmbito estadual quanto em âmbito federal.
A primeira, Lei 18.058/2024, de iniciativa da deputada estadual Marina Helou (Rede-SP), foi publicada em 5 de dezembro e vale para as unidades escolares da rede pública e privada no estado de São Paulo. Uma segunda, Lei 15.100/2025, de iniciativa do deputado Alceu Moreira (MDB-RS), foi publicada em 13 de janeiro e vale para todos os estabelecimentos públicos e privados de ensino da educação básica no território nacional.
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Com fundamento em estudos, ambas as propostas foram motivadas por um entendimento de que o uso de celulares e outros dispositivos nas escolas reduz a capacidade de aprendizado das crianças e dos adolescentes (pois afeta sua concentração e sua habilidade de reter informações importantes) e prejudica sua saúde mental (gerando ansiedade, solidão e outras formas de sofrimento psíquico).
Os parlamentares enxergaram na restrição do uso de celulares em escolas uma solução para esse problema, um objetivo que, se cumprido, promoveria valores fundamentais como o direito à educação e o direito à saúde.
Do ponto de vista da identificação dos problemas carentes de solução e da definição e pertinência dos objetivos perseguidos, o mérito no trabalho parlamentar que antecedeu as duas iniciativas é evidente. Isso sem falar, é claro, no árduo trabalho de construção dos consensos políticos necessários para a aprovação dessas leis. Os raros momentos em que as evidências científicas e a vontade política se alinham merecem comemoração.
Dito isso, o sucesso de uma lei, para além de sua aprovação, não depende exclusivamente da identificação de problemas e consensos políticos sobre a forma do seu enfrentamento.
Prova disso é que, desde 2007, a proibição do uso de celulares em estabelecimentos de ensino já está vigente no estado de São Paulo. A Lei 12.730/2007, de iniciativa do deputado estadual Orlando Morando (PSDB-SP), já mirava, há quase 20 anos, objetivos semelhantes às iniciativas mais recentes, mas fracassou em produzir seus efeitos pretendidos. Ou seja, a lei simplesmente não “pegou”.
Da forma de delegação e da operacionalização prática da lei
O passado mostra que há risco de a lei atual ser ineficaz, deixando de ser observada, e, ao final, se tornar inefetiva, isto é, incapaz de atingir os objetivos pretendidos. Contudo, os debates legislativos não parecem ter dado importância a essa experiência de insucesso, e os principais documentos do trâmite sequer discutem explicitamente o problema de como garantir a efetividade da lei.
Entre o papel e a realidade, entre o mundo das normas e o mundo dos fatos, há um longo caminho. Ainda que detalhes da regulação possam ser deixados para o Poder Executivo, como optaram por fazer tanto a legislação estadual quanto a federal, a falta de discussão sobre as condições para a efetiva implementação da lei chama a atenção.
Apesar de parecer apenas um detalhe, o diabo está nos detalhes. E isso nos leva a perguntas mais abrangentes: apesar de haver consenso sobre o problema e objetivo, será essa uma boa legislação? O que faz uma lei ser boa? Como avaliar a qualidade da legislação? Como podemos melhorar a qualidade da lei?
Tais perguntas basilares parecem igualmente óbvias e necessárias, o que torna surpreendente o quão pouco são discutidas. Claro, sempre há alguma discussão sobre o mérito de certas leis em particular, mas são muito mais raras as tentativas de conferir sistematicidade a essa análise e de prover um conjunto de ferramentas útil para essa tarefa.
Existe, contudo, literatura a respeito, por vezes encontrada sob o rótulo de legística ou, como preferimos, legisprudência, por acentuar a importância do exercício do julgamento e do aprendizado com a experiência para a arte de legislar.
Não há espaço aqui para tratarmos em detalhe desses textos, mas temos por objetivo exemplificar como esse conhecimento nos permite avaliar a lei e mostrar como, mesmo em um caso de amplo consenso político, baseado em evidências científicas, há espaço para reflexões que podem levar ao aprimoramento da regulação.
Assim sendo, uma possível explicação para a inefetividade da tentativa anterior de proibir celulares em São Paulo (Lei 12.730/2007) é que a legislação decidiu pouco e delegou mal. A lei em questão era extremamente simples. Previa apenas a proibição do uso de celulares por alunos no horário de aula (art. 1º) e a regulamentação dessa proibição pelo Executivo no prazo de 90 dias (art. 2º).
À primeira vista, existe lógica por trás disso: uma lei que se pretende aplicável aos mais diversos ambientes escolares talvez deva evitar prever detalhes procedimentais muito específicos. Melhor deixar ao Executivo, com seus órgãos destinados a gerenciar e fiscalizar o sistema de ensino, a decisão sobre como efetivar a proibição.
Contudo, a regulamentação veio na forma do Decreto 52.625, de 15/01/2008, que simplesmente determinou que a direção de cada escola deveria garantir que celulares não fossem usados em sala de aula e que, em caso de descumprimento, deveriam ser aplicadas as “medidas previstas em regimento escolar ou normas de convivência da escola” (art. 1º, parágrafo único).
Nem o Legislativo nem o Executivo estaduais assumiram a responsabilidade de decidir sobre a maneira de efetivar a proibição e, possivelmente pela ausência de procedimentos de fiscalização e sanções determinados por uma autoridade superior, a lei “não pegou” e as escolas paulistas simplesmente não garantiram seu cumprimento.
A lei estadual mais recente (Lei 18.058/2024) parece ter aprendido algo com esse erro. Ela foi mais detalhada quanto à efetivação da proibição, determinando, por exemplo, que os celulares deverão permanecer armazenados de forma segura, sem possibilidade de acesso, e que a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, em conjunto com as escolas, deveriam criar protocolos específicos para esse armazenamento.
Dizemos que a legislação aprendeu “algo”, pois, apesar de ter mostrado preocupação com a operacionalização prática da lei, o armazenamento não é o ponto mais importante para o sucesso da legislação, e sim o compromisso da comunidade escolar, incluindo pais e alunos, com o atendimento das normas, o que envolve a persuasão da sua importância e a sanção em caso de descumprimento.
Felizmente, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) já editou documento orientador sobre a lei, mas em vez de focar na forma de armazenamento como previsto originalmente, focou em detalhar as estratégias para sensibilização de toda a comunidade escolar a respeito da importância de seguir nova legislação e as medidas a serem tomadas em caso de descumprimento da proibição pelos alunos.
A lei federal, por outro lado, foi silente quanto a detalhes para a implementação prática da proibição, principalmente no que diz respeito à delegação. Isso é profundamente problemático, já que a norma vai se aplicar a ambientes escolares inseridos em realidades muito diversas.
A escolha óbvia seria atribuir poderes de regulamentação ao Ministério da Educação (MEC) e/ou às secretarias estaduais e municipais de educação, visto que estas autoridades já contam com uma estrutura voltada a normatização e fiscalização das redes de ensino.
Infelizmente, apesar das articulações do MEC em relação ao tema, inclusive com o lançamento de guias que tratam do uso equilibrado e consciente de celulares na escola logo após a sanção da lei, até o momento não foi editada regulamentação federal, o que sugere que, em estados sem regulamentação própria, a garantia da proibição pode depender da capacidade de a direção das escolas se autorregulamentar e criar um diálogo frutífero com pais e alunos.
Conclusão
Neste breve artigo, optamos por tratar de uma questão que entendemos ser relevante para o sucesso das novas leis que proíbem o uso de aparelhos eletrônicos e celulares em escolas: a forma de delegação com vistas à operacionalização prática da lei.
Isso não quer dizer que uma análise mais aprofundada não poderia revelar mais questões pertinentes, ainda que menos impactantes. Poderíamos discutir, por exemplo:
- (i) se a proibição é clara e contempla o interesse dos pais em se comunicar com os filhos;
- (ii) se a proibição é suficiente para reduzir os danos à saúde mental dos alunos, considerando que eles ainda poderão usar os dispositivos fora da escola;
- (iii) se a elevada abstração da lei federal ao prever exceções à proibição (afirmando, por exemplo, que será permitido o uso de dispositivos proibidos “para garantir os direitos fundamentais”) pode resultar em conflitos interpretativos;
- (iv) se a lei estadual poderia prever a responsabilização dos alunos por danos causados aos dispositivos armazenados pela própria escola;
- (v) se caberia prever procedimentos de fiscalização das escolas para saber se a proibição está sendo implementada a contento, bem como se caberia sanções para as escolas, alunos e pais que não agirem de forma adequada;
- (vi) a qualidade do processo legislativo em si, especialmente dos pareceres e das justificativas dos textos que vieram a ser aprovados.
Nosso objetivo, mais do que apontar problemas, é demonstrar que, mesmo quando o Legislativo (i) identifica um problema empiricamente fundamentado (prejuízos ao aprendizado e à socialização), (ii) determina uma solução simples e com efeitos facilmente observáveis (proibir o uso dos dispositivos que causam esses prejuízos) e (iii) organiza um consenso ao redor dessa solução, esses difíceis passos são apenas os primeiros para construir uma legislação efetiva.
Daí a importância da legisprudência: é essencial promover uma cultura de estudo e de diálogo sobre o que torna uma lei boa e sobre como podemos aprender com as experiências do passado para implementarmos novas soluções.