A Controladoria-Geral da União (CGU) publicou, no último dia 11 de setembro, a Portaria Normativa SE/CGU 226[1]. Em linhas gerais, o normativo estabelece os procedimentos e a metodologia de avaliação para programas de integridade em contratações públicas, nos termos da Lei 14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos)[2].
O anúncio ocorreu no chamado Dia da Integridade Empresarial, evento promovido pela CGU nos dias 10 e 11 de setembro. Durante a ocasião, foram conduzidos diversos painéis compostos por acadêmicos, autoridades e especialistas representantes dos setores públicos e privados sobre temáticas relacionadas à integridade empresarial, tais como: Lei Anticorrupção, Lei de Licitações, Responsabilidade de Empresas, Acordos de Leniência, Termos de Compromisso, Inovações no Combate à Corrupção, Promoção da Cultura da Ética e Integridade.
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O normativo se insere no conjunto de diversas outras medidas e diretrizes anunciadas em decorrência dos esforços empreendidos pela CGU com vistas a continuamente aprimorar o arcabouço jurídico pátrio voltado ao combate à corrupção sistêmica e ao fortalecimento da cultura de ética, governança corporativa, transparência e prevenção de irregularidades, com ênfase às formas de intersecção entre as esferas estatais e particulares.
Ante a iminência da entrada em vigor da norma, considerando o prazo instituído de 60 dias após a publicação, a próxima terça-feira (11/11) corresponde ao marco temporal a partir do qual passarão a valer todas as novas regras e diretrizes[3].
Nessa toada, o presente artigo se propõe a tecer algumas breves considerações acerca da Portaria Normativa SE/CGU 226, suas consequências jurídicas e possíveis impactos práticos enquanto instrumento legal promotor de mudanças profundas nas relações de compliance, ética e integridade no amplo ecossistema das contratações públicas.
Arcabouço normativo
É pertinente compreender o percurso evolutivo do arcabouço normativo brasileiro que evidencia, com rigor nos últimos 12 anos, o robustecimento dos mecanismos jurídicos voltados à prevenção da corrupção, ao fomento da cultura de integridade e a responsabilização de pessoas jurídicas.
Marco inaugural deste movimento corresponde à Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), a qual dispõe sobre o regime de responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira[4]. Em síntese, a norma corresponde à resposta estatal para diversos anseios populares, bem como alinha o país com compromissos internacionais assumidos no âmbito de órgãos como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A Lei Anticorrupção prevê, em seu art. 7º, inciso VIII, que a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, no âmbito da pessoa jurídica, poderá ser considerada uma circunstância atenuante em eventual aplicação de sanções[5].
Nos anos seguintes, a trajetória da evolução normativa se traduziu na edição e atualização da Lei de Licitações e Contratos, a qual inseriu a figura dos programas de integridade em contratações públicas em três específicas situações: (i) contratações de grande vulto (Art. 25, §4º); (ii) critério de desempate em licitações (art. 60, inciso IV); e (iii) reabilitação de licitante ou contratado sancionado perante a Administração Pública (art. 163, parágrafo único).
Em razão da necessidade de regulamentar os novos ditames legais, o Decreto Federal 12.304/2024 foi editado com o objetivo de delinear os parâmetros legais e a avaliação dos programas de integridade nas hipóteses de contratação de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, de desempate de propostas e de reabilitação de licitante ou contratado, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional[6].
O Decreto 12.304/2024, embora tenha representado passo significativo na consolidação das regras de integridade aplicáveis às contratações públicas, ainda não fornecia os parâmetros essenciais à normatização infralegal do conjunto normativo que estrutura o complexo marco regulatório da integridade empresarial.
Portanto, remanescia uma lacuna jurídica que instalava diversos dissensos e imbróglios, inviabilizando em larga medida a efetiva implementação dos normativos até então existentes. Como resultado, enfraquecia-se o sistema de combate à corrupção e frustravam-se os objetivos maiores de fomentar a segurança jurídica, a lisura nas contratações públicas e o nível de confiança para com e entre os diversos players envolvidos.
É nesse contexto que, passados nove meses desde a edição do último marco regulatório, foi publicada a Portaria Normativa SE/CGU 226. O normativo, enfim, estabelece os parâmetros e a metodologia específicos para avaliar os programas de integridade previstos no Decreto 12.304, nas referidas hipóteses de contratações de grande vulto, desempate entre propostas e reabilitação de licitante ou contratado.
A relevância da Portaria Normativa SE/CGU 226 e a reverberação de seus efeitos por todo o arcabouço jurídico voltado às contratações públicas e ao combate à corrupção evidenciam o caráter paradigmático no novo dispositivo. Assim, corresponde a um retorno estatal ao pujante clamor oriundo de todos os agentes privados que operam contratações perante a Administração Pública de compreender os critérios, indicadores e instrumentos normativos existentes com maior grau de uniformidade e precisão, inaugurando novo capítulo no compliance regulatório.
Aplicação e objetivos
Como um dos pontos centrais, o instrumento materializa e sistematiza 17 parâmetros objetivos para fins de avaliação qualitativa dos programas de integridade quanto à sua implantação, desenvolvimento ou aperfeiçoamento (art. 2º). São eles:
- Comprometimento da alta direção e instâncias de governança;
- Padrões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade;
- Abrangência das políticas e demais procedimentos internos à terceiros,
- Treinamentos periódicos;
- Gestão de riscos de integridade;
- Registros contábeis fidedignos;
- Controles internos que garantam a confiabilidade das transações;
- Procedimentos específicos para prevenir, detectar e remediar fraudes e ilícitos no âmbito de quaisquer interações com o setor público;
- Mecanismos de controle específicos para os temas de direitos humanos, trabalhistas e preservação do meio ambiente;
- Estrutura interna independente responsável pela aplicação e fiscalização do programa de integridade;
- Canal de denúncias estruturado e proteção aos denunciantes de boa-fé (whistleblower);
- Medidas disciplinares em caso de violações ao programa de integridade;
- Procedimentos de apuração e interrupção de quaisquer irregularidades ou infrações detectadas;
- Práticas de due diligence baseadas em risco para terceiros, pessoas expostas politicamente (PEP), patrocínios e doações;
- Práticas de due diligence em processos de aquisições, fusões e reestruturações societárias;
- Transparência e responsabilidade socioambiental; e
- Monitoramento e aperfeiçoamento contínuo do programa de integridade.
Por consequência, resta evidenciado que os parâmetros avaliativos instituídos suplantam perspectivas meramente formais e constroem um modelo substancial e multidisciplinar. Torna-se inequívoco que, no bojo das contratações públicas, não basta a mera existência de um programa de integridade genérico e que tangencie um ou outro aspecto – os programas devem, no que concerne aos procedimentos de avaliação por parte do poder público, denotar maturidade institucional, parâmetros de análise probatória, transversalidade, adequação aos riscos e resultados organizacionais palpáveis.
Outro aspecto relevante em relação aos parâmetros de análise instituídos corresponde à calibragem a ser operada, em cada caso, conforme as especificidades e o porte da pessoa jurídica. Ou seja, a despeito da sistematização de parâmetros objetivos a serem considerados nas avaliações, é essencial que os preceitos da razoabilidade e proporcionalidade sejam a todo tempo observados, posto que não é possível, ou viável, presumir que o mesmo crivo analítico deve ser aplicado a todo e qualquer ente privado engajado em contratações públicas.
Assim, os critérios deverão ser ponderados considerando (art. 2º, §1º): (i) número de empregados e colaboradores; (ii) faturamento; (iii) estrutura de governança corporativa e a complexidade das unidades internas; (iv) utilização de agentes intermediários; (v) setor econômico de atuação; (vi) geografia de atuação; (vii) grau e essencialidade de interação com o setor público; e (viii) quantidade e localização das pessoas jurídicas que integram o grupo econômico.
Traçadas essas premissas iniciais, surge o seguinte questionamento: na prática, para o âmbito privado, qual a magnitude dos impactos e como devem ser conduzidas as preparações para eventuais avaliações?
A resposta, nada simplória, segue o racional do normativo, ao passo que a sistematização instituída, caracterizada por abordagem baseada em riscos, multidisciplinaridade e funcionalidade, requer, de igual modo, uma abordagem institucional transversal, adequada à individualidade de cada ente e em contínuo desenvolvimento.
Decorre que, por lógica, as medidas a serem implementadas por empresas de micro e pequeno porte não detêm o mesmo nível de profundidade técnica e magnitude do que aquelas necessárias aos grandes players do mercado. Esta constatação, essencial a todos os entes, corresponde também à demonstração clara de que a CGU propôs um modelo de compliance regulatório baseado em avaliações por risco e evidências concretas, sustentado por métricas dinâmicas e moldáveis a cada caso particular.
Na prática, a possibilidade de calibrar a avaliação conforme as particularidades de cada ente privado eleva o crivo regulatório para, por exemplo, os interessados em contratos de grande vulto e setores econômicos com maior exposição a riscos, bem como abranda o rigor para micro e pequenos empresários que participam de um ou outro certame de valor baixo.
Como desdobramento, cabe a cada ente privado interessado em contratar com o poder público adotar uma visão estratégica de seu programa de integridade enquanto um valioso ativo institucional e um fator regulatório indeclinável. A partir da institucionalização do referencial técnico e metodológico consubstanciado pela nova norma, a internalização de mecanismos de integridade corporativa e da perspectiva evolutivo-sistêmica com a qual estes devem ser tratados torna-se não um singelo capricho ou formalidade, mas sim um critério decisório e indutor de tratativas negociais com o Estado, bem como uma vantagem competitiva no mercado.
Em conclusão, a entrada em vigor da Portaria Normativa SE/CGU 226 consolida a inauguração de novo capítulo no compliance regulatório e um marco jurídico no campo da integridade relacionada a contratações perante a Administração Pública.
Ao estabelecer e sistematizar toda uma lógica para os programas de integridade em contratações públicas, é suprida uma lacuna jurídica que, desde a última regulamentação da Lei de Licitações e Contratos, tornava imprecisos o conteúdo e a forma pelos quais os entes privados seriam avaliados e classificados em relação aos seus respectivos mecanismos internos de controle.
Isto posto, a demarcação de parâmetros objetivos segundo os quais os programas de integridade deverão balizar-se e serão qualitativamente avaliados corresponde a imenso avanço normativo. A partir do novo modelo regulatório proposto, a integridade corporativa é edificada e reconhecida não como uma liberalidade, mas sim um elemento imprescindível no campo das contratações públicas, que deve ser tratado como um fator estratégico, técnico e diretamente relacionado à viabilidade ou não de conduzir-se tratativas negociais com o Estado.
Somado a isso, o prisma avaliativo instituído denota que serão adotadas perspectivas calibradas conforme as especificidades do caso. Ou seja, é iniludível que incumbe a cada ente privado, uma vez inserido neste contexto, empreender esforços ativos de editar sua cultura organizacional e conceber mecanismos ajustados à sua realidade de maneira contínua, documentada e baseados em riscos.
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Em relação às perspectivas futuras, a ótica sistêmico-evolutiva instalada fomenta nova cultura de relacionamento entre o Estado e o setor privado, a qual exige postura ativa, compromissos éticos concretos e a capacidade institucional de amoldar sua conjuntura aos ditames regulatórios de forma metrificada e auditável.
Trata-se, enfim, de uma paradigmática evolução do feixe regulatório da integridade empresarial. O aprimoramento e refino do arcabouço normativo se revela, para além de desejado, um marco fortalecedor de todo o sistema jurídico pátrio e das intersecções entre o público e privado, os quais devem ser permeados por transparência, legalidade e previsibilidade.
[1] Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-normativa-se/cgu-n-226-de-9-de-setembro-de-2025-654677738.
[2] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm.
[3] Portaria Normativa SE/CGU n. 226/2025. Art. 42 – Esta Portaria Normativa entra em vigor sessenta dias após a sua publicação.
[4] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm.
[5] Lei n. 12.846. Art. 7º- Serão levados em consideração na aplicação das sanções: VIII – a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito de pessoa jurídica.
[6] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Decreto/D12304.htm.