Recentemente, foi aprovada a Lei 14.689/2023, disciplinando uma série de medidas de caráter tributário, entres as quais a autorregularização de débitos e a conformidade tributária. Meses depois, foi sancionada a Lei 14.740/2023 dispondo sobre a autorregularização incentivada de tributos. Apesar de, por vezes, aparecerem juntos, o instituto da autorregularização não se confunde com os programas de conformidade cooperativa nos moldes recomendados pela OCDE.
Já vimos no Brasil, pelo menos ao longo dos últimos 30 anos, diversos programas de “regularização de dívidas”, que popularmente ficaram conhecidos como Refis, nos três níveis de governo. São programas que normalmente oferecem ao contribuinte inadimplente com a Fazenda Pública a possibilidade de pagamento de dívidas tributárias com uma significativa redução de multa, juros de mora e até mesmo do encargo legal.
A mais recente iniciativa foi chamada de autorregularização incentivada, descrita como um “programa de conformidade fiscal do governo federal”, instituído pela Lei 14.740/2023[1]. Tal programa concede ao contribuinte condições especiais para regularização de tributos administrados pela Receita Federal através da confissão da dívida e do pagamento ou parcelamento do valor integral dos débitos, sem a incidência das multas de mora e de ofício e desconto de 100% dos juros de mora[2].
Esses programas, entretanto, não modificam o relacionamento entre os contribuintes e a Fazenda, não trazem nenhum avanço sobre uma questão hoje fundamental na relação jurídico-tributária, que é a confiança entre as partes, baseada em transparência, previsibilidade e segurança. Ou seja, são leis de ocasião com efeitos econômicos, mas que não aprimoram a relação fisco-contribuinte. Pelo contrário, podem criar incentivos à inadimplência, dada a frequência com que são verificados.
Por outro lado, com os programas de conformidade cooperativa fiscal, que vêm ganhando mais espaço no Brasil, como é o caso do programa Confia, busca-se analisar o comportamento, o histórico de conformidade e a estrutura de controle fiscal dos contribuintes, a fim de que a Administração Tributária possa se relacionar da maneira mais eficaz e eficiente com cada um deles[3].
Programas de conformidade cooperativa são voluntários, promovem um desenvolvimento do relacionamento entre Fisco e contribuintes, que normalmente são estimulados a participar do desenvolvimento do programa, e são baseados em técnicas de análises de risco e critérios para justificar o tratamento diferenciado para alguns contribuintes, características essas não observadas em simples ofertas de autorregularização.
A diferença entre a autorregularização tributária e os programas de conformidade cooperativa foi bem delimitada na MP 1160/2023. Tanto assim que o seu artigo 2º dispôs que a Receita Federal poderia: (i) disponibilizar métodos preventivos para a autorregularização; e (ii) estabelecer programas de conformidade para prevenir conflitos e assegurar o diálogo com os contribuintes[4]. Ao colocar os instrumentos em incisos separados, parece clara a intenção de discipliná-los diferentemente, até mesmo por seus objetivos serem diversos.
Essa MP, no entanto, não chegou a ser votada no Congresso Nacional, sendo, em substituição, encaminhado o PL 2384/2023[5]. Nesse PL, o artigo 2º reproduzia o disposto na MP 1160, mas o artigo 3º criava uma classificação de contribuintes, que serviria como parâmetro para a graduação de medidas “no âmbito de programas de conformidade (…) com vistas à autorregularização dos créditos tributários antes do lançamento”[6]. Começava aí a confusão legislativa dos institutos.
Após a regular tramitação pelo Congresso Nacional, o PL 2384 foi convertido na Lei 14.689/2023. O artigo 7º dessa lei dispõe que, para aplicação das medidas de incentivo à conformidade tributária, a RFB considerará critérios como o histórico de regularidade fiscal do sujeito passivo. O § 1º desse dispositivo determina que, como incentivo à conformidade tributária, sejam adotadas medidas como a orientação prévia e não aplicação de penalidades “com vistas à autorregularização”.
O §3º do mesmo art. 7º, por sua vez, estabelece que as medidas de incentivo à conformidade tributária podem ser graduadas e condicionadas em função de alguns comportamentos dos contribuintes, entre os quais, a apresentação voluntária, antes do início do procedimento fiscal, de atos ou negócios jurídicos relevantes para os quais não haja posicionamento prévio da administração tributária. Esse dispositivo traz um dos pilares dos programas de conformidade cooperativa: a busca de transparência em troca da segurança[7].
Mas, apesar de tratados na mesma lei, os programas de conformidade cooperativa não se confundem com a autorregularização, eles vão além, estimulando a confiança recíproca e aprimorando o relacionamento entre fisco e contribuintes. A distinção foi inclusive destacada nas razões de veto do presidente da República ao artigo 6º da Lei 14.689/2023, que obrigava a Receita Federal a disponibilizar a autorregularização, destacando que a implementação indiscriminada da autoregularização poderia implicar redução da arrecadação e redução da eficácia dos programas de conformidade[8].
Assim, atualmente temos em vigor uma lei que proporciona fundamentos jurídicos para autorregularização e para os programas de conformidade cooperativa, com a indicação de regras que incentivam a confiança como base para aprimoramento da relação Fisco-contribuinte, mas que ainda confunde conceitualmente a conformidade cooperativa com autorregularização. Não obstante, uma lei específica para programas de conformidade traria avanços nessa seara e poderia dirimir dúvidas sobre essa importante iniciativa para as administrações tributárias modernas.
Por essa razão, vê-se com bons olhos o recente encaminhamento pelo governo do PL 15/2024 ao Congresso Nacional, com a finalidade de disciplinar os programas de conformidade tributária em âmbito federal. A proposta engloba três programas de conformidade: o Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal (Confia), o Programa de Estímulo à Conformidade Tributária (Sintonia) e o Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado (OEA)[9]. Mas os detalhes desse projeto ficam para análise em outra ocasião.
[1] Disponível em: L14740 (planalto.gov.br).Essa lei foi regulamentada pela Instrução Normativa RFB 2168/2023. Disponível em: IN RFB 2168/2023 (fazenda.gov.br).
[2] Para detalhes do programa de autorregularização, conferir: Aderir ao programa de autorregularização incentivada da Receita Federal (www.gov.br).
[3] Sobre o programa Confia, conferir: Programa Confia — Receita Federal (www.gov.br). Para uma análise detalhada dos programas de conformidade cooperativa e o futuro desses programa no Brasil, conferir: Cooperative Compliance in Brazil: What Does the Future Hold? (iadb.org).
[4] Sobre a importância da MP 1160/2023 para dar embasamento legal aos programas de conformidade cooperativa, conferir: A polêmica Medida Provisória 1.160/2023 e os programas de conformidade cooperativa – JOTA.
[5] Para a íntegra do PL 2384/2023, conferir: PL 2384/2023 — Portal da Câmara dos Deputados – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br).
[6] Sobre o PL 2384 e as medidas de incentivo à conformidade nele previstas, ver: Conformidade cooperativa: o programa Confia e o PL 2384/2023 (jota.info).
[7] OECD, Co-operative Compliance: A Framework – From Enhanced Relationship to Co-operative Compliance. Paris: OECD Publishing, 2013, p. 29.
[8] A íntegra da mensagem de veto pode ser conferida em: Mensagem 0487-23 (planalto.gov.br).
[9] Sobre o PL 15/2014, ver: Receita Federal detalha projeto sobre conformidade tributária e aduaneira – JOTA.