Os programas de conformidade cooperativa fiscal têm por base uma relação de confiança e cooperação mútua entre administração tributária e contribuinte[i]. Esses programas já são uma realidade em diversos países[ii] e visam a melhorar a eficácia e a eficiência da administração tributária, repercutindo em benefício de toda a sociedade.
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Em comparação com outras iniciativas destinadas a aumentar a segurança e a transparência fiscal, esses programas têm muito a oferecer, evitando disputas longas e caras. Mas um arcabouço normativo para um programa dessa natureza deve estabelecer uma relação de benefícios mútuos entre as partes: administração tributária e contribuintes.
No Brasil, esses programas ganharam maior notoriedade com o Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal – Confia[iii], da Receita Federal do Brasil (RFB), atualmente em fase de conformação. Recentemente, foi publicada a Portaria RFB nº 387, de 13 de dezembro de 2023, que institui o piloto do Confia.
Conformidade cooperativa pressupõe transparência e diálogo, sendo de grande relevância que o contribuinte, para que possa ter conforto em ser transparente, tenha a possibilidade de dialogar previamente em relação às questões nas quais busca um posicionamento da administração tributária, podendo incluir até mesmo um sistema diferenciado de penalidades.
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Considerando essas e outras possibilidades de tratamento diferenciado, é comum, na aplicação de programas de conformidade, a preocupação com o princípio da igualdade. É que os programas de conformidade cooperativa geralmente permitem que apenas certos tipos de contribuintes, normalmente os maiores ou mais relevantes economicamente, estabeleçam uma relação diferenciada com a administração tributária[iv].
Por isso, os países devem prestar especial atenção aos critérios que determinam o acesso a esse tipo de programa, concebendo-os de forma que se permita uma justificação objetiva e razoável de qualquer diferença de tratamento dos contribuintes dentro e fora do programa[v]. A escolha de critérios relacionados com as suas obrigações legais pode facilitar a explicação para o tratamento diferenciado na aplicação de sanções.
No modelo geral, definido pela Lei nº 9.430, de 1996, no caso de infrações tributárias, não existe uma gradação de penalidades para os contribuintes em razão de características como ser um “bom pagador” ou estar incluído em um programa de cooperative compliance.
Para incentivar a conformidade tributária, a administração tributária pode adotar algumas medidas como a prioridade na análise de pedidos administrativos, a orientação prévia, a concessão de prazo para autorregularização e até mesmo a não aplicação de penalidade. É isso que diz a Lei nº 14.689, de 2023, recentemente aprovada.
Entretanto, a possibilidade de orientação e não aplicação de penalidade pela administração tributária para os contribuintes que façam parte de programas de conformidade cooperativa pode suscitar dúvidas em razão da obrigatoriedade das atividades de lançamento e cobrança do crédito tributário previstos no arts. 3º e 142 do CTN.
Isso porque o art. 3º do CTN determina que o tributo deve ser cobrado “mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. Por sua vez, o art. 142, parágrafo único, do mesmo CTN estabelece que a atividade de “lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional” da autoridade responsável pelo lançamento.
Esses dispositivos poderiam sugerir que, ocorrido o fato gerador e não apurado o tributo pelo sujeito passivo, a autoridade tributária não poderia deixar de efetuar o lançamento e cobrar o tributo, acrescido de multa e juros devidos, ainda que o contribuinte estivesse em um programa de conformidade cooperativa, definido por lei ordinária. Afinal, o CTN foi recepcionado com natureza de lei complementar.
Parece-nos, contudo, que a intenção do legislador com esses dispositivos foi evitar desvios e arbitrariedade por parte das autoridades administrativas a quem compete o lançamento. Mas se há critérios gerais que orientem a atuação da autoridade administrativa responsável pela verificação fiscal, isso não fere ou desrespeita o CTN.
Assim, essa atividade deve observar os estritos limites da lei. Mas isso não significa que a autoridade fiscal deverá sempre efetuar o lançamento de ofício com multa. Haverá situações em que a multa a ser aplicada será majorada, como nos casos de multa qualificada ou agravada. Outras em que a multa pode deixar de ser aplicada como incentivo à conformidade.
Dessa forma, se a própria lei prevê a possibilidade de não aplicação de penalidade como medida de incentivo à conformidade tributária, não há que se falar em responsabilidade funcional da autoridade fiscal que eventualmente deixasse de lançá-la ou a graduasse em função dos critérios previstos na legislação, que expressem uma política de atuação da administração tributária.
A possibilidade de autoregularização, a não aplicação de penalidade e demais medidas de incentivo devem observar os critérios tais como a apresentação voluntária de atos e negócios à administração tributária, o atendimento tempestivo à requisição de informações e o recolhimento do tributo no prazo (art. 7º, §3º, da Lei 14.689, de 2023).
Ao aplicar as medidas de incentivo à conformidade, a autoridade competente deverá se pautar pelas diretrizes da lei e motivar sua escolha, permitindo, assim, um controle dessa atividade.
Em conclusão, os programas de cooperative compliance podem incluir medidas de incentivo à conformidade tributária, como a gradação ou não aplicação de penalidades. A flexibilidade na aplicação das multas, desde que observados os critérios e limites previstos na legislação que estabelece esses programas, é compatível com a sistemática do CTN.
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i[] Sobre as principais características dos programas de conformidade e sua implementação no Brasil, conferir: Conformidade cooperativa: o programa Confia e o PL n° 2.384/2023 (jota.info)
ii[] BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO (BID). Cumplimiento cooperativo: un enfoque para la fiscalidad sostenible y con múltiples partes interesadas. Disponível em: Cumplimiento cooperativo: un enfoque para la fiscalidad sostenible y con múltiples partes interesadas (iadb.org).
iii[ RECEITA FEDERAL. O CONFIA é o programa brasileiro de Conformidade Cooperativa Fiscal. Aplicando o conceito de gerenciamento de riscos e analisando o comportamento, o histórico de conformidade e a estrutura de controle fiscal dos contribuintes, a Administração Tributária pode se relacionar da maneira mais eficaz e eficiente com cada um. Disponível em: Programa Confia — Receita Federal (www.gov.br).
iv[ MAJDANSKA, Alicja and SZUDOCZKY, Rita. Designing Co-operative Compliance Programmes: Lessons from the EU State Aid Rules for Tax Administrations. British Tax Review., n. 2, 2017, p. 205.
v[ MAJDANSKA, Alicja and PEMBERTON, Jonathan Leigh. Different Treatment, Same Outcome: Reconciling Cooperative Compliance with The Principle of Legal Equality. Journal of Tax Administration, v. 5, n. 1, 2019.