A promulgação da Lei 14.874/2024, que estabelece as normas básicas que regulamentam pesquisas clínicas com seres humanos no Brasil, gerou muito otimismo por parte de quase todos os interessados nesta área.
Embora persista alguma apreensão, principalmente em relação aos dois vetos presidenciais, que os pesquisadores esperam que sejam derrubados pelo Congresso, e às regulamentações que precisam ser promulgadas para que a lei possa ser devidamente implementada, a maior visibilidade deste assunto também trouxe de volta, pelo menos à nossa mente, um ponto que, embora já referenciado em regulamentações internacionais (atualmente em discussão para atualização) e internalizado em diversos países, acreditamos que mereceria alguma atenção.
O ponto em questão é a destinação de eventual excedente de estoque de medicamento registrado e disponível comercialmente, utilizado como Novo Produto Experimental, como Medicamento Comparador, como objeto de ensaios clínicos para uma nova Indicação Terapêutica ou em estudos de Fase 4.
Interessante, ainda, que, embora não sejam objeto deste artigo, em muitos casos, equipamentos e dispositivos utilizados durante ensaios clínicos que, embora perfeitamente adequados para reutilização, são, com certa frequência, descartados.
Mesmo considerando que não é comum a existência de excedentes de produtos aprovados e comercialmente disponíveis, utilizados em estudos clínicos pela constante modernização dos sistemas de controle de estoque, isto acontece com mais frequência do que se poderia imaginar, especialmente em lugares onde os medicamentos do estudo precisam ser importados.
É o que ocorre, por exemplo, em casos em que o estudo termina antes do prazo planejado, quer porque a eficácia do medicamento experimental foi demonstrada antes do prazo previsto para o final do período de estudo ou, inversamente, quando se verifica a falta da sua eficácia. O mesmo acontece com medicamentos aprovados comercialmente e objetos de estudos de novas indicações terapêuticas ou estudos de fase 4.
Considerando os regulamentos contidos na atual versão do Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos para Uso Humano (ICH) da Diretriz Harmonizada – Boas Práticas Clínicas (GCP) (em conjunto ICH/GCP), a fonte primária para Regulamentos de Estudos Clínicos em todo o mundo, não é possível, via de regra, doar estoque remanescente de um Medicamento Comparador utilizado em um estudo clínico, mesmo que registrado e disponível comercialmente, e/ou outros produtos comercialmente aprovados.
Deve-se notar que a regulamentação hoje em vigor reflete, como deve refletir, a preocupação com a segurança das partes (sujeitos da pesquisa ou indivíduos, patrocinadores, pesquisadores, e autoridades regulatórias) para mitigar, tanto quanto possível, riscos relacionados à destinação dos medicamentos.
Como em estudos clínicos os Medicamentos Comparadores que estão disponíveis comercialmente podem ser reetiquetados e/ou reembalados para indicar que o uso está restrito a determinado ensaio clínico, as alterações na embalagem (ou rotulagem) os tornam, em princípio e sob interpretação estrita, diferentes daquele objeto da respectiva autorização de comercialização.
De todo modo, é importante lembrar que, sendo este o caso, esses Produtos Comparadores deveriam ser embalados, manuseados, e armazenados seguindo-se as devidas especificações para a manutenção da sua integridade e eficácia durante todo o prazo de validade aprovado.
No caso do Brasil (e da Organização Pan-Americana de Saúde, a Opas), o destino do estoque remanescente de medicamentos de ensaios clínicos é mencionado expressamente em poucas normas regulatórias/legislativas anteriores que regulamentam os ensaios clínicos e não é mencionado na nova lei. Hoje, são estas as menções:
Resolução Anvisa RDC 38/2013 (com alteração)
… ao final do programa, contabilizar os medicamentos importados e não utilizados, dando sua devida destinação, seja sua destruição no Brasil ou seu retorno ao exterior, mantendo o devido registro dos procedimentos adotados.
Diretriz da Opas: Boas Práticas Clínicas: Documento das Américas, 2008
O patrocinador deverá:
(b) Manter registros que documentem o envio, recebimento, disposição, devolução e destruição do(s) produto(s) sob investigação.
Como se ve, a Anvisa adota as Diretrizes emitidas e publicadas pelo Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos para Medicamentos para Uso Humano (ICH); da Diretriz Harmonizada – Boas Práticas Clínicas (BPC) e da Diretriz da Opas: Boas Práticas Clínicas: Documento das Américas, 2008, portanto, via de regra, não seria possível hoje, no Brasil, doar, ou fazer qualquer utilização de qualquer produto excedente de estudo clínico, mesmo que o produto esteja já aprovado pelas autoridades reguladoras e disponível comercialmente.
A versão das GCP/ICH atualmente em vigor é a ICH E6 (R2) e, pela redação da sua cláusula 5.14.3, os patrocinadores de ensaios clínicos devem garantir que os produtos experimentais não utilizados sejam devolvidos ao patrocinador ou descartados.
ICH E6 (R2)
5.14 Fornecimento e Manuseio de Produto(s) sob Investigação
5.14.3 O patrocinador deve garantir que os procedimentos escritos incluam instruções que o investigador/instituição deve seguir para o manuseio e armazenamento do(s) produto(s) experimental(ais) para o ensaio e documentação dos mesmos. Os procedimentos devem abordar o recebimento, manuseio, armazenamento, dispensação, recuperação adequada e segura do produto não utilizado dos participantes e a devolução do(s) produto(s) experimental(is) não utilizado(s) ao patrocinador ou disposição alternativa, se autorizado pelo patrocinador e em conformidade com as regulamentações aplicáveis requisito(s).
Para melhor compreensão do assunto e da regulamentação, cabe ressaltar que o ICH/GCP(R2) define Medicamento Experimental como:
“Uma forma farmacêutica de um ingrediente ativo ou placebo sendo testada ou usada como referência em um ensaio clínico, incluindo um produto com autorização de comercialização quando usado ou montado (formulado ou embalado) de forma diferente da forma aprovada, ou quando usado para uma indicação não aprovada, ou quando usado para obter mais informações sobre um uso aprovado”.
E define Comparador (Produto) como:
“Um produto experimental ou comercializado (ou seja, controle ativo), ou placebo, usado como referência em um ensaio clínico”.
Fica claro então, pela redação das definições, que mesmo os produtos que já estão autorizados para comercialização pelas autoridades competentes são considerados produtos experimentais, mesmo que contenham apenas alterações de rotulagem.
O ICH/GCP(2) não define nenhum outro medicamento ou dispositivo utilizado em ensaios clínicos.
É de conhecimento geral que medicamentos são caros, se não extremamente caros, e devem, sempre que possível, serem usados para todos os pacientes que deles necessitem. Não nos parece que a destruição de produtos que permitiriam uma melhor qualidade de vida (se não uma possibilidade de salvar vidas) para muitas pessoas possa ser vista como uma decisão razoável/racional. A possibilidade de doar ou de utilizar tais produtos deveria ser mais do que bem-vinda, desde que, evidentemente, seja rigorosamente regulamentada e controlada.
Como há uma nova versão do ICH E6 atualmente em consulta pública, acreditamos que seus termos poderão ser o ponto de partida para a possibilidade de dar destinos mais racionais aos excedentes de medicamentos em ensaios clínicos.
Esta nova versão, o ICH E6 (R3), já foi endossada pelo Expert Working Group em 19 de maio de 2023, mas permanece em consulta e, como tal, ainda é um trabalho em andamento. Sob esta nova versão, quando for formalmente adotada, e se adotada de acordo como na atual minuta, poderá abrir a possibilidade de dar destinos diferentes aos produtos excedentes de Ensaios Clínicos (veja abaixo). É importante ter em mente, no entanto, que eventuais abordagens/destinos alternativos deverão, por razões óbvias, aplicar-se apenas a produtos devidamente autorizados pelas respetivas autoridades reguladoras.
2.10 Gerenciamento de Produtos Investigacionais
2.10.3 O investigador/instituição e/ou farmacêutico ou outro indivíduo competente deve manter registros da entrega do produto, do inventário, do uso por cada participante (incluindo documentar que os participantes receberam as doses especificadas pelo protocolo) e a devolução ao patrocinador e destruição ou disposição alternativa de produto(s) não utilizado(s). Esses registros devem incluir datas, quantidades, números de lote/série, datas de validade (se aplicável) e os números de código exclusivos atribuídos ao(s) produto(s) sob investigação e aos participantes do ensaio. Para medicamentos autorizados, podem ser consideradas abordagens alternativas às acima mencionadas, de acordo com os requisitos regulatórios locais.
Acreditamos que as alterações propostas ao ICH poderiam ajudar a iniciar a discussão de novas regulamentações locais que possam permitir, sempre considerando o risco de qualidade, a utilização alternativa de excedentes de produtos aprovados e disponíveis comercialmente utilizados em estudos clínicos.
É importante observar que, mesmo com o Brasil seguindo as Diretrizes do ICH, durante a pandemia da Covid-19 a Anvisa emitiu a Resolução RDC 568/2021 (que permaneceu em vigor até maio de 2023), formalmente revogada pela Resolução RDC 805/2023, que permitiu, sob condições muito específicas, a utilização de medicamentos e produtos biológicos para o tratamento da Covid a partir do restante inventário de ensaios clínicos realizados, ou ainda em curso, no Brasil.
Esperamos que este artigo contribua para as discussões sobre as mudanças no ICH e para a regulamentação local que certamente o acompanhará.