Em fevereiro deste ano estive na Califórnia e visitei Los Angeles e San Francisco. Em L.A., hospedei-me no centro antigo e decidi dar uma volta de carro logo ao lado, em Skid Row, a região que concentra a maior legião de sem-teto dos EUA, que ocuparam o lugar com centenas de barracas.
Mesmo para quem está acostumado a testemunhar a cracolância em São Paulo ou a circular pelas áreas mais degradadas do Rio de Janeiro, a visão é chocante. Milhares de desvalidos, maltrapilhos e dependentes de drogas vagam como zumbis e não são nem um pouco amistosos. Em San Francisco, inadvertidamente, passei uma manhã na região barra-pesada de Tenderloin e lá comecei a achar os pedintes de Copacabana verdadeiros lordes.
O problema dos cidadãos em situação de rua nos EUA é dramático e, na Califórnia, em especial, traumático. Em todo o país, 600 mil pessoas não têm um endereço, e metade destes não possuem um lugar para dormir. Boa parte está na Califórnia. Os condados e municipalidades deste estado começaram a endurecer a legislação para resolver o problema, depois de esgotadas as tentativas de tratar a questão de forma “social”.
Como acontece em todo o mundo, mesmo com abrigos disponíveis, muitas pessoas continuam dormindo nas ruas. O problema é altamente complexo. Para dormir em um abrigo, é preciso cumprir regras. Não é possível consumir álcool e drogas no lugar, os abrigados precisam tomar banho, dormir e acordar em horários certos. Casais não podem dormir no mesmo alojamento. Por essas e outras razões, muitas pessoas nesta triste situação acabam sendo arredias aos serviços sociais do estado.
Diante desta realidade, os governos locais da Califórnia e de outros estados da Costa Oeste começaram a endurecer a legislação. Códigos municipais passaram a estabelecer que moradores em situação de rua que se recusam a ir para abrigos, quando há vagas disponíveis, podem ser advertidos e multados. Em caso de reincidência, muitas destas leis previam a pena de prisão (nos EUA, estados e municípios podem editar leis penais).
Ocorre que essa política acabou sendo questionada no Judiciário federal como inconstitucional, sob a alegação de que ela constituía punição cruel e inusual, vedada pela Oitava Emenda. Em um caso que envolvia estatuto municipal da capital de Idaho, Martin v. Boise, a Corte de Apelações do Nono Circuito (o tribunal federal mais liberal dos EUA), entendeu que leis locais fixando sanções penais aos sem-teto são inconstitucionais, por violação à Oitava Emenda, ainda que ressalvada a aplicação da norma apenas quando houver leitos disponíveis nos abrigos municipais.
A partir deste precedente, houve uma tempestade de ações questionando a constitucionalidade de leis de condados e municipalidades da Costa Oeste. Uma delas, City of Grants Pass, Oregon v. Johnson et al., chegou à Suprema Corte.
A ação foi patrocinada por uma organização que defende pessoas em situação de rua. Grants é uma pequena cidade com 38 mil habitantes, com cerca de 600 pessoas que vivem nas ruas, a maioria em barracas (faz muito frio no Oregon). A lei local proíbe dormir em logradouros públicos, inclusive dentro de carros, como também montar acampamento em áreas públicas. Após multa, em caso de reincidência, os recalcitrantes podem ser presos. As sanções somente podem ser aplicadas aos renitentes se houver vagas disponíveis nos abrigos da cidade.
A Suprema Corte julgou o caso na última semana de junho, e refutou a tese de inconstitucionalidade da norma local, por seis votos a três, em linhas ideológicas: os juízes conservadores entenderam pela validade da lei e os liberais a consideraram contrária à Constituição. A tese prevalecente, formulada no voto do Justice Neil Gorsuch, sustentou-se em cinco fundamentos:
(a) a proibição de penas cruéis e inusuais somente pode ser avaliada em relação a métodos de execução penal e não de tipificação de delitos; a legislação da cidade de Grant Pass prevê como pena máxima a detenção em cadeia pública por no máximo 30 dias e essa sanção em si não é cruel ou inusual;
(b) o estatuto criminal da cidade de Grant Pass não está criminalizando o “status” das pessoas sem-teto, mas sim a conduta pessoal independentemente da sua situação, na medida em que ela também é aplicável a um turista em férias ou a um estudante que decide acampar em uma área pública para protestar;
(c) de acordo com o precedente Powell v. Texas, 392 U. S. 514 (1968), o Estado pode criminalizar a conduta de embebedar-se em público, ainda que isso seja resultado de um estado de alcoolismo, pois é legítimo o interesse da sociedade de prevenir atos decorrentes deste estado, ainda que este possa ser descrito “em certo sentido” como “involuntário” ou “ocasional”. Da mesma forma, a repressão à conduta do sem-teto não pode ser confundida com os status decorrentes de sua situação;
(d) a definição de conceitos subjetivos sobre o que vem a ser uma pessoa “involuntariamente em situação de rua” ou como devem ser classificados os “abrigos efetivamente disponíveis” não podem ser avaliados a partir da cláusula “penas cruéis e inusuais”. A decisão do Nono Circuito criou um teste que é impossível de aplicar na prática por juízes locais, dando azo a arbitrariedade, gerando em consequência insegurança jurídica;
(e) a questão das pessoas em situação de rua é complexa, com múltiplas causas e ela deve ser resolvida por políticas públicas decididas democraticamente pelas comunidades interessadas, não sendo adequado que o judiciário nela intervenha através da Oitava Emenda, que não foi concebida para esse fim.
A juíza Sonia Sotomayor, decana entre a minoria liberal, redigiu o voto vencido, que começou de maneira bastante enfática: “Dormir é uma necessidade biológica, e não um crime. Para algumas pessoas, dormir ao relento é a sua única opção”. Ela pontua que se trata de uma questão social que afeta meio milhão de americanos, cuja origem decorre de questões complexas e interconectadas como dívidas e salários estagnados, violência doméstica e sexual, deficiências físicas e mentais, alto custo de moradia e baixa oferta de imóveis acessíveis.
O voto da minoria critica as razões da maioria, por ignorar as consequências da criminalização do ato de dormir em lugares públicos, já que essas pessoas, já estigmatizadas, passam a ser vistas como criminosas, tornando ainda mais difícil sua reintegração social. Ao se permitir que sejam reprimidas pela autoridade policial, deixando os locais a que estão habituados, acabam se colocando em situação de maior risco.
Sotomayor também questiona a eficiência das políticas municipais de abrigo, em razão de suas exigências relativas a questões de gênero, idade, sexualidade, prática religiosa, horários rígidos, além de problemas de segurança. Relativamente ao caso concreto, ela menciona o valor alto das multas, impossível de ser pago por moradores de rua, que inevitavelmente levariam à sanção consequente da prisão.
Quanto à Oitava Emenda, ela defende que a norma não é apenas aplicável à execução de penas, mas também a casos em que a punição é flagrantemente desproporcional à natureza do crime, como no precedente Ingraham v. Wright, 430 U.S. 651 (1977). Nesta linha, faz uma leitura diferente da maioria sobre a questão da criminalização de “status”, invocando o precedente Robinson v. California 370 U.S. 660 (1962), na qual a Suprema Corte negou a possibilidade de criminalizar alguém por ser dependente de narcóticos, justamente com base na Oitava Emenda.
A juíza Sotomayor, com boa dose de razão, critica a ideia de que a lei seria neutra, destinada a qualquer pessoa que queira acampar em área pública, mesmo não sendo um sem-teto. O seu voto examina, inclusive, os debates da câmara municipal que resultaram na elaboração da norma, nos quais claramente se percebe que eram voltados à população em situação de rua: chegou-se, inclusive, a debater a possibilidade de se dar a essas pessoas passagens de ônibus para outros lugares ou mesmo de levá-las para destinos diversos. Também demonstra como a norma é aplicada exclusivamente pelas autoridades policiais a essa classe de pessoas.
A despeito de sua veemência e de fundadas razões, a posição liberal de Sotomayor e das demais juízas que subscreveram seu voto na questão das pessoas em situação de rua enfrentou uma enorme dificuldade política: o governador democrata da Califórnia, Gavin Newsom (um dos cotados a substituir Biden na chapa presidencial), bem como outros prefeitos do mesmo partido, apresentaram amicus curiae briefs apoiando a legislação municipal de Grant Pass. A questão do homelessness é hoje tão crítica na Califórnia que os políticos progressistas já abandonaram a posição tradicional de inércia ou tolerância.
Concorde-se ou não com a decisão da Suprema Corte dos EUA no tema, é preciso lê-la (inclusive o voto divergente). É um bom resumo dos prós e contras das políticas públicas e repercussões jurídicas sobre essa questão tormentosa que também foi objeto de apreciação recente pelo STF na ADPF 976, cuja orientação, em termos gerais, foi bastante distinta da adotada na corte constitucional americana.