Em julho de 2020 foi sancionada a Lei 14.026, que instituiu o novo Marco do Saneamento Básico no Brasil. O objetivo era universalizar e qualificar a prestação de serviço de água e esgoto no país, colocando metas para que 99% da população tenha acesso à água potável e 90% ao tratamento e à coleta de esgoto até 2033.
Para tornar isso possível, o novo Marco de Saneamento extinguiu um dispositivo da legislação que permitia que os contratos de concessão para coleta e tratamento de esgoto e distribuição de água entre os municípios e as empresas estatais pudessem ser feitos sem licitação – o que abriu mais espaço para que empresas privadas pudessem prestar esses serviços, ainda hoje atendidos, na sua maioria, por empresas públicas estaduais.
Contudo, passados quatro anos de vigência da lei, as metas para 2033 ainda permanecem distantes. Um estudo de 2023 do Instituto Trata Brasil mostra que o país precisaria mais do que dobrar os investimentos por ano no setor para que as metas previstas no novo Marco do Saneamento fossem atingidas até 2033. O Brasil (com uma população de 203 milhões de habitantes) ainda possui 93 milhões de pessoas sem acesso à coleta de esgoto e 33 milhões sem acesso à água tratada.
O fato de a nova lei ter tirado a vantagem que empresas públicas tinham sobre as privadas na prestação desses serviços foi muito bem recebida por diversos setores da sociedade brasileira, inclusive aqueles ligados ao mercado financeiro. Segundo os defensores do novo Marco do Saneamento, o fato de haver mais concorrência nas licitações, atrairia mais investimentos para o setor, o que facilitaria o atingimento das metas estabelecidas, melhoraria a qualidade dos serviços prestados e reduziria os preços para os consumidores.
Que os governos locais têm sido ineficientes e incapazes de ampliar a prestação de serviços básicos, como o de coleta de esgoto e distribuição de água potável, é nítido em diversas partes do Brasil. Todavia, a forma como isso deve ser solucionado é que gera debates.
Importante ressaltar que serviços públicos como saneamento básico, transmissão de energia e transporte público costumam ser monopólios naturais. Isso significa que o consumidor não pode escolher qual empresa irá lhe prestar tais serviços, devendo aceitar e pagar para a única companhia que atua naquele determinado mercado – seja ela privada ou pública.
A concorrência, que é tão importante para elevar os níveis de eficiência em uma economia de mercado, portanto, só pode ocorrer nestes casos no momento da licitação, não havendo uma concorrência direta dentro do mercado consumidor.
Esse fato leva os críticos da concessão de serviços públicos à iniciativa privada a defenderem a manutenção destes serviços nas mãos do Estado, afirmando que este seria mais capaz de prestar um serviço adequado a um preço menor para a população, já que não haveria na iniciativa privada o incentivo à melhoria do serviço e à redução de preços, através da concorrência com outras companhias, depois de vencida a licitação.
A verdade é que a eficiência da exploração pela iniciativa privada de determinado serviço vai depender muito da forma como ocorrer a privatização ou a contratação da companhia prestadora de serviços pelo Poder Público, bem como das agências reguladoras, responsáveis por estabelecer diretrizes no mercado e fiscalizar o cumprimento das obrigações firmadas no contrato entre o ente público e privado.
Contudo, olhando para o cenário internacional, podemos observar uma tendência de reestatização (serviços que eram administrados pelo governo, depois passaram para a administração de empresas privadas e, por fim, voltaram para as mãos do Estado) principalmente de serviços públicos monopolizados, incluindo saneamento básico, o que parece demonstrar relação também com a natureza da atividade e não só com a forma da privatização/concessão.
De acordo com a Transnational Institute (TNI), entre os anos de 2000 e 2017, houve pelo menos 835 casos de remunicipalização de serviços públicos pelo mundo, envolvendo 1.600 cidades em 45 países diferentes. Entre grandes cidades apontadas pelo levantamento, Berlim, Buenos Aires e Paris aparecem na lista como exemplos de retorno do serviço de saneamento básico para a administração pública, depois de uma experiência nas mãos da iniciativa privada.
Para a pesquisadora do TNI responsável por este levantamento, Satoko Kishimoto, a fim de garantir um maior lucro aos seus sócios e acionistas, boa parte dessas concessionárias privadas não fizeram os investimentos previstos em contrato com o Poder Público, reduziram a qualidade dos serviços e aumentaram os preços para o consumidor final.
Esses fatos, inclusive, podem não só afetar os consumidores como toda uma cadeia produtiva, dependendo do serviço público. No caso de saneamento e transmissão de energia, por exemplo, o aumento de preços e a falta de investimentos podem impactar na inflação.
No Brasil, um caso de reestatização (ou remunicipalização) do setor de água e esgoto foi o de Itu, município de 168 mil habitantes no interior de São Paulo. Depois de 10 anos sendo gerido por uma empresa privada, o serviço de saneamento voltou para o controle do Município, tendo sido criada a Companhia Ituana de Saneamento (CIS) para tal fim. Enquanto o saneamento de Itu estava sendo administrado pela iniciativa privada, a cidade passou por graves períodos de racionamento de água (entre os anos de 2014 e 2015), devido à falta de investimento em obras, e um aumento excessivo de preços para os consumidores.
Dito tudo isso, fica aberta a questão se empresas do setor privado devem competir de igual para igual com o setor público pela exploração de serviços públicos que são monopólios naturais, ou se antes da iniciativa privada participar do processo de licitação, deve-se passar um pente fino para que seja avaliado se de fato a companhia irá conseguir prestar um serviço de melhor qualidade com preços razoáveis para os consumidores, enquanto também mantém os investimentos necessários.
Se tudo isso for ignorado pelo Poder Público no momento da contratação da empresa privada e não houver agencias reguladores eficazes, o resultado pode vir a ser o mesmo que todos esses casos apontados pelo TNI, e o Estado terá que retomar o serviço para si, depois de muito prejuízo causado à população.
Não se trata aqui de criticar as privatizações e as concessões à iniciativa privada de maneira geral. São milhares os exemplos de melhoria na qualidade dos serviços e de maior satisfação dos consumidores em decorrência de empresas que passaram das mãos do Poder Público para o da iniciativa privada.
Entretanto, no caso de serviços públicos monopolizados, o assunto é um pouco mais delicado e não podemos ficar presos a dogmas que nos façam querer privatizar ou estatizar somente por causa das nossas correntes ideológicas. As consequências da falta de uma análise profunda dos impactos destas ações sempre recairão na população, principalmente na mais humilde.