Privatização da Corsan: desafios para a universalização do saneamento – Parte 1

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Em janeiro completaram-se exatos seis meses da transferência das ações da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) para uma empresa privada. É um privilégio e uma oportunidade participar desta rica experiência que tem sido a privatização, sob as luzes no novo Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/20), da primeira empresa estadual de saneamento do Brasil.

Embora a desestatização em si tenha sido formalmente concluída em julho de 2023, com a assinatura do contrato de compra e venda das ações, a transição para a efetiva operação com todas as características de uma operadora privada de serviços de saneamento básico é um processo complexo, longo no tempo e, não raras vezes, sabotado por resistências ideológicas, corporativas e concorrenciais. Exige-se muita atenção e resiliência por parte do novo controlador para superar os desafios e aprumar a Corsan à prestação desse essencial serviço à população, agora como empresa privada.

Muito além dos desafios de um M&A entre empresas privadas – e quem já participou de uma aquisição, seja na qualidade de comprador ou de empresa adquirida, sabe que integrar a empresa adquirida ao modus operandi do novo controlador não é simples – os desafios da privatização são bem maiores. Há, no Brasil, um distanciamento gigante, operacional e de gestão, entre empresas controladas pelo poder público e aquelas geridas sob a batuta da iniciativa privada em vários aspectos: regime jurídico, forma de trabalhar, objetivos da atuação, visão do negócio, possibilidades e recursos disponíveis, enfim, toda uma cultura de atuação muito diversa que impõe, ainda, ao ensejo da desestatização, o rearranjo das relações com os diversos stakeholders.

Com a privatização há uma mudança de paradigma, que acaba por impor aos empregados da empresa adquirida uma mudança de mindset e por exigir dos novos controladores habilidade para promover as transformações consideradas necessárias, integrando-as ao que a empresa já praticava enquanto pública. No caso da Corsan, por exemplo, a empresa já atuava há mais de 60 anos em centenas de municípios gaúchos e, como não poderia deixar de ser, acumula muita história e experiências para serem aproveitadas e espalhadas Brasil afora.

Destarte, para promover a privatização de fato, isto é, para que o processo de privatização realmente ocorra, são muitas as frentes de atuação em adaptação à nova cultura e ao novo paradigma de gestão. Contudo, nos limites deste primeiro artigo destacar-se-á uma das frentes fundamentais para a transformação: aquela que se refere à área jurídica/contratual. Eis, aqui, um dos mais nevrálgicos pontos de atenção.

Com a privatização e em decorrência dela, a Corsan deu início à adequação das relações jurídicas que possui com os 317 municípios nos quais opera, com os principais objetivos de: (i) formalizar a convolação dos contratos de programa – baseados na cooperação interfederativa entre estado e municípios e disciplinados pela Lei 11.107/2005 – em contratos de concessão de serviços públicos – fundados na cooperação público-privada e regidos, nos seus termos gerais, pelas Leis 8.987/1995 e 11.445/2007; e (ii) formalizar a incorporação  das metas previstas no marco legal do saneamento para universalização dos serviços, quais sejam, 90% de cobertura de esgotamento sanitário e 99% de cobertura de água até 2033. Esta adequação materializa-se na celebração do denominado Termo de Adequação e Consolidação entre a Corsan e cada um dos municípios concedentes.

Ocorre que alguns destes Termos, após firmados, foram objeto de questionamentos judiciais, com a formulação de pedido liminar para a suspensão dos seus efeitos, sempre, ao nosso ver, com frágeis e infundados argumentos. Dentre tais argumentos, colhem-se: (i) seria necessária autorização do legislativo municipal para a celebração do Termo; (ii) a celebração do Termo não poderia ocorrer sem prévio processo licitatório; (iii) com a privatização da Corsan, os contratos de programa devem ser considerados extintos e, portanto, não poderiam ser aditados; (iv) não fora realizada consulta e/ou audiência pública prévia à celebração do Termo.

De se ressaltar que os autores destas ações, ao requererem a suspensão dos efeitos do Termo requerem, na realidade, a suspensão dos investimentos voltados para a universalização dos serviços de saneamento tão necessários no Estado do Rio Grande do Sul, cuja cobertura dos serviços encontra-se abaixo da média nacional, tendo a privatização ocorrido, justamente, para mudar esta realidade.

As questões de forma e de fundo foram bem apanhadas, porém, pelo Ministério Público gaúcho em suas manifestações nos autos das ações, posicionando-se pela manutenção dos efeitos das avenças entre Corsan e municípios tanto por não estarem eivados de qualquer ilegalidade quanto por reconhecer a importância dos investimentos para a universalização do saneamento. Neste sentido, vale ilustrar com o seguinte trecho do parecer exarado pelo promotor de Justiça Cível de Cachoeira do Sul[1]:

“O escopo do aditivo ao Contrato de Programa, sob o viés do interesse social integra conjunto amplo de medidas, diretrizes e soluções visando a assegurar a universalização dos serviços públicos de saneamento básico, sendo que as metas previstas são de observância cogente aos entes federados.

(…)

Também se vê que o contrato de programa, em princípio, não exige autorização legislativa para que seja pactuado, razão pela qual sua eventual alteração também não. (…)

Tudo indica e mostra, destarte, esforço uniforme dos atores republicanos voltados à concreta universalização do saneamento básico e do acesso à água potável, havendo urgência isto sim é na realização dessa demanda, mais do que relevante, que impacta diretamente, na dignidade humana (…).

Na mesma linha, a manifestação da promotora de Rosário do Sul[2]:

…a situação envolve saneamento básico, direito fundamental de todos e de precária implementação no Município (em todo Brasil para ser lhano); a prevalecer a sustação do ato durante todo o processo, não apenas Rosário do Sul estaria com contrato irregular, mas também (e mais grave) não haveria previsão para atingimento das relevantes metas de esgotamento e água potável. (…)

Na esteira do Ministério Público e acolhendo suas ponderações, decidiu o judiciário gaúcho pelo indeferimento das medidas liminares requeridas nas ações que hostilizaram o Termo, por entender ausente a fumaça do bom direito (o que dirá o próprio direito, no mérito), como também inexistente o perigo da demora. Em verdade, tais decisões vêm reconhecendo a existência do perigo da demora inverso, caracterizado pela não realização dos investimentos caso o Termo tivesse sua eficácia suspensa. Veja trecho, a propósito, da decisão do il. juiz da 2ª Vara Cível da Comarca de Charqueadas:

“…cumpre destacar que suspender a novel relação jurídica estabelecida entre o Município de Charqueadas e a CORSAN traria, em verdade, grande dano irreparável aos próprios munícipes de nossa cidade, na medida em que interromperia a realização de investimentos imediatos pela concessionária e, mais ainda, o atingimento das metas nacionais de cobertura dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, além daquelas de redução de perdas na distribuição da água, cujo termos final é previsto para o ano de 2033.

Justamente por isso é que, ao menos no plano material, a concessão da liminar pleiteada pela parte autora não estancaria danos irreparáveis ou de difícil reparação a serem suportados pela municipalidade ou seus municípios, mas, sim, imporia indevido sobrestamento de política pública que oneraria por demais os administrados, causando verdadeiro dano reverso”

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS)[3], em sede de agravo e ainda monocraticamente, confirmou a decisão do magistrado acima, asseverando:

“Ocorre que, em que pese as sérias alegações do agravante, o objeto do contrato que visa suspender liminarmente é a prestação de serviços de saneamento básico – isto é, serviços fundamentais para a promoção da saúde.

Desse modo, em atenção ao art. 196 da CF e à Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB – Decreto-lei 4.657/1942), especialmente no que diz respeito às alterações provenientes da Lei n. 13.655/2018, necessário conjecturar as consequências práticas de eventual decisão suspendendo os serviços públicos de abastecimento de água, esgotamento sanitário e manejo de resíduos sólidos, no Município de Charqueadas – o que, prima facie, não é razoável e pode estabelecer cenários de verdadeiro caos. (grifos cf. original)

Como se vê, tanto o Ministério Público como o Judiciário gaúchos vêm ressaltando a relevância e urgência dos investimentos em saneamento básico bem como não haver qualquer ilegalidade na celebração dos Termos. E é a isto que se pretende dar luz, ou seja, a jurisprudência gaúcha vai se formando solidamente para permitir o atendimento de uma política de saneamento básico pelos municípios. Dito de outro modo, para viabilizar, como prioridade, o atendimento dos direitos fundamentais à saúde, meio ambiente equilibrado, trabalho e renda, como corolários do princípio da dignidade da pessoa humana, fortemente impactados pela infraestrutura e prestação adequada dos serviços de distribuição de água potável e coleta e tratamento de esgoto.

Há mesmo uma tomada de consciência pela sociedade acerca da urgência de prover saneamento básico. O saneamento é vida. E o reconhecimento disso pela sociedade e instituições, que vêm cada vez mais reivindicando a prestação dos serviços, só cresce.

[1] Ação Popular 00729.002.092/2023

[2] Mandado de Segurança 00856.004.226/2023

[3] Agravo de Instrumento 5380201-05.2023.8.21.7000/RS