Com a reforma legal do setor de saneamento materializada pela Lei 14.026, de 15 de julho de 2020, vários temas trazidos pela nova legislação ganharam repercussão no mainstream do setor. Assuntos que não estão presentes no cotidiano das pessoas em geral, mas que, no final do dia, afetam como os serviços serão entregues (qualidade) e como serão pagos (preço) pela população.
É o exemplo da prestação regionalizada dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. O tema tem sido abundantemente discutido e ganhou justa atenção de explorações conceituais, principalmente sob a ótica jurídico-constitucional ao longo dos últimos anos. Sem embargo a essa abordagem, outras análises sobre as implicações decorrentes da configuração regionalizada dos serviços, entre elas o aspecto tarifário, parecem emergir com a implementação de projetos de Concessão e Parcerias Público-Privadas (PPP).
Sem prejuízo ao conceito técnico e legal, mas para fins práticos, é possível entender a prestação regionalizada de serviços de água e esgoto como o atendimento a uma determinada área, abrangendo a população de mais de um município, com uniformidade de regulação (normativos e especificações técnicas, operacionais, comerciais e tarifárias) e de fiscalização, com compatibilidade de planejamento (infraestrutura, prioridades e investimento) dos serviços. Esse tipo de atendimento tem em vista gerar ganhos de escala, viabilizar econômica e financeiramente a execução dos serviços e garantir o acesso universal desses pelas pessoas.
A prestação regionalizada foi considerada como princípio pela atualização do Marco Regulatório do Saneamento[1], ou seja, algo que a política federal (a atuação da União) deve observar, notadamente, na destinação de recursos e financiamentos[2]. Dessa forma, desde 2020, três decretos federais foram elaborados para regulamentar o assunto, sendo o Decreto Federal nº 11.599, de 12 de julho de 2023, o mais recente deles.
Numa visão geral, essa regulamentação procurou estabelecer disposições acerca da caracterização e estruturação da prestação regionalizada, com a definição das suas tipologias (região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, unidade regional de saneamento básico, bloco de referência e Região Integrada de Desenvolvimento)[3].
Aqui se aproveita a oportunidade para identificar objetivamente esses modelos de Estrutura de Prestação Regionalizada (EPR) com a área na qual esse tipo de atendimento dos serviços de saneamento deverá ser prestado.
A partir dessa regulamentação e por competência constitucional[4], os estados foram incumbidos de editar leis estaduais, definindo a conformação dos respectivos territórios nas EPR previstas na legislação federal. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), até o ano de 2023, foram concebidas 119 estruturas por todo o país, abrangendo um total aproximado de 5525 municípios. Nesse universo, 18 estados fracionaram seus territórios em mais de uma estrutura de prestação regionalizada.
Essa estruturação regional fracionada permite considerar uma reconfiguração dos requisitos e da remuneração da prestação dos serviços nos municípios integrantes da conformação regionalizada. Até então, grande parte dessas operações se caracterizava por relações contratuais individuais com cada municipalidade, sendo reguladas, na sua grande maioria, por uma agência reguladora estadual, com a definição de nível e de estrutura tarifários de forma estadual, majoritariamente. Assim, não estaria distante inferir que os volumes de serviço e de receita requerida na operação dessas EPR fossem dimensionados para uma escala diferente da operada antes da formação desses arranjos.
Achados da literatura internacional (Trémolet e Binder, 2010; Ferro, 2017) reconhecem que o tamanho ótimo do serviço regionalizado depende da abordagem de questões relacionadas à definição de tarifas. Ao agregar várias municipalidades em uma área regionalizada, a receita necessária para a prestação do serviço será auferida numa base modificada de clientes em relação a uma operação de um único município. Essa variação ocorrerá tanto na sua quantificação total dos usuários dos serviços, quanto na perspectiva de agrupamento desses utilizadores (tarifa social, residencial, comercial, industrial, entidades públicas e assistenciais, etc) de perfis de consumo e de renda de usuários dispostos na área de exploração reconfigurada.
Nesse contexto, por exemplo, pode ser necessário atender a uma base maior de entidades assistenciais ou de usuários sem acesso com limitada capacidade de pagamento, demandando um redimensionamento dos subsídios direcionados ou extraídos dos outros usuários. Também pode ser possível que a tabela de tarifas de um arranjo até então existente seja inadequada na concretude da configuração regional para a cobrança dos serviços. A adoção de escolhas possíveis deverá ser lastreada pela diligência de estudos e análises de impacto, tanto para a viabilidade da operação, quanto para a população a ser afetada pelo serviço regionalizado.
Essas reflexões direcionam a abordagem para uma outra preocupação, relacionada à harmonização das tarifas dentro da área conformada ao serviço regionalizado. Na delimitação do conjunto de municípios abrangidos pela prestação regionalizada, é possível que os valores das tarifas e os requisitos das políticas tarifárias municipais sejam diversificados. Na experiência catalogada, é comum a resistência de operações locais sustentáveis quanto ao subsídio direcionado para prestações locais deficitárias, bem como a existência de situações regionais indiferentes à harmonização das tarifas.
Não obstante esses registros, análises como a de Frone (2008) destacam que a equalização tarifária é um aspecto necessário para o potencial compartilhamento de custos de serviços entre áreas com custo mais elevado e aquelas que são menos onerosas. De acordo com a avaliação dos estudos de ERM e Kingdon (2005), há um certo nível de incerteza no dimensionamento das potenciais economias de escala geradas com a regionalização, destacando a harmonização tarifária entre os desafios da sua implementação. A depender do grau de diferenciação das políticas tarifárias locais, é possível que sua compatibilização não seja alcançada no curto prazo, demandando a exaustão de soluções graduais de transição para a adequação tarifária do arranjo regionalizado.
A abordagem do dimensionamento ótimo e da harmonização são desafios tarifários regionais concretos e complexos. O respectivo tratamento dessas questões deverá ser considerado em algum momento pela modelagem dos projetos de universalização dos serviços de água e esgoto, concebida para as EPR já instituídas. Ainda não é possível identificar uma tendência de soluções adotadas ou de necessidade de rearranjos de agrupamento de municípios nesta etapa dos projetos.
Já existe uma trilha iniciada de lições aprendidas na literatura internacional e um acervo de projetos já estruturados no Brasil, a exemplo do Bloco de Referência C do estado de Alagoas, onde se considerou a adequação de tarifas ao longo de um prazo de sete anos nos municípios atendidos por serviços autônomos locais. Contudo, é imperioso considerar as soluções para esses desafios em uma abordagem de “alfaiataria”, aplicada ao caso concreto dos projetos e lastreada por análises ex-ante quanto ao impacto regulatório das opções escolhidas. Essa perspectiva é necessária para mitigar o risco de não assertividade dos encaminhamentos assumidos na concepção dos projetos por ocasião de sua implementação.
ALAGOAS. Projeto Saneamento Básico. Maceió, AL [2020]. Disponível em: https://parcerias.al.gov.br/projeto-saneamento-basico/ Acesso em 02.fev.2024.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 03.fev.2024.
BRASIL. Decreto nº 11.599, de 12 de julho de 2023. Brasília, DF: Presidência da República, [2007]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11599.htm . Acesso em: 03.fev.2024.
BRASIL. Lei nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007. Brasília, DF: Presidência da República, [2007]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11445compilado.htm . Acesso em: 03.fev.2024.
BRASIL. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm Acesso em: 03.fev.2024.
BRASIL. [SNIS]. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Painel de Regionalização dos Serviços de Saneamento Básico no Brasil. Brasília, 2023. Disponível em: http://appsnis.mdr.gov.br/regionalizacao/web/ . Acesso em: 04.fev. 2024.
ERM, in association with Stephen Myers Associates and Hydroconsiel, and William Kingdom. [2005]. Models of Aggregation for Water and Sanitation Provision Water Supply and Sanitation Working Notes 1, World Bank, Washington, DC. Disponível em <https://ppp.worldbank.org/public-private-partnership/sites/ppp.worldbank.org/files/ppp_testdumb/documents/WSSWorkingNote1aggregation.pdf> Acesso em 02.fev.2024.
FERRO, Gustavo. Literature Review: Global Study on the Aggregation of Water Supply and Sanitation Utilities. [2017] Washington, DC, World Bank. Disponível em https://documents1.worldbank.org/curated/en/962151503628572004/pdf/119097-WP-PUBLIC-P159188-35p-ADD-SERIES-lit-review-24-8-2017-12-18-52-W.pdf Acesso em 02.fev.2024
FRONE, Simona. Factors and Challenges of Regionalization in the Water and Wasterwater Sector. [2008]. Institute of National Economy, Romanian Academy, Bucharest. Disponível em https://www.revecon.ro/articles/2008-2/2008-2-12.pdf Acesso em 02.fev.2024.
TRÉMOLET, Sophie, and BINDER, Diane. The Regulation of Water and Sanitation Services in DCs [developing countries]. Paris: Agence Française de Développement [2010]. Disponível em: https://www.yumpu.com/en/document/view/15764648/the-regulation-of-water-and-sanitation-services-in-dcs-afd> Acesso em 03.fev.2024.
[1] Inciso XIV do artigo 2º da Lei 11.445/2007.
[2] Ver redação do artigo 50 da Lei 11.445/2007.
[3] Ver redação do artigo 6º do Decreto 11.599/2023.
[4] §3º do artigo 25 da Constituição Federal de 1988.