Há um contexto externo de discussão de projetos de leis e emendas constitucionais que visam promover mudanças na forma de decidir do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, restringindo a possibilidade de os ministros decidirem monocraticamente. Em paralelo a esse ímpeto reformador externo, algumas mudanças em aspectos relevantes do desenho do processo decisório partem internamente do próprio STF.
No julgamento conjunto das ADIs 2943, 3309 e 3318, que questionam normas atribuidoras de poder de investigação criminal ao Ministério Público, o presidente Roberto Barroso mencionou uma mudança no modelo decisório do STF: “antes era agregativo (…) e agora estamos trabalhando com um modelo mais deliberativo, em que as pessoas vão se manifestando e construindo conjuntamente a solução”. Ressaltou ainda: “a gente está evoluindo para um modelo em que com diálogo nós construímos soluções, quando não consensuais, pelo menos com uma maioria que se faz passo a passo, e vejo isso como extremamente positivo, fico feliz de estar presidindo essa transmutação, eu diria, do modelo”.
Se está mesmo havendo uma transmutação, quais fatores contribuiriam para isso?
Na forma tradicional de decidir, os ministros apresentam votos em separado, com poucas trocas de ideias e argumentos para atingir uma solução consensual. Tal fato muitas vezes torna desafiador para o público entender o que de fato foi decidido em cada caso. O julgamento conjunto acima mencionado reúne uma série de práticas decisórias novas, ou relativamente novas, que potencialmente fomentam o debate e a construção de consenso entre os ministros.
Primeiro, o voto conjunto de dois ministros. O julgamento teve início no plenário virtual, local onde alguns ministros já tinham apresentado seus votos separadamente – inclusive o relator, Edson Fachin. Após o ministro Gilmar Mendes apresentar, virtualmente, voto parcialmente divergente do então voto do relator, o próprio Fachin pediu destaque para debater a questão no plenário físico, em um sinal claro da dificuldade de deliberação no ambiente virtual, uma vez que os votos são dados por escrito e somados aos outros sem maior intercambio entre eles.
No início dos trabalhos no plenário físico, Fachin explicou que “a partir desse diálogo cooperativo e construtivo, nós chegamos a um denominador comum das nossas percepções, o que acabou nos levando a apresentar um voto que contém (…) um conjunto de ideias, premissas e especialmente os itens da tese que nós formulamos em conjunto”.
Ou seja, o relator não apenas reformulou o voto que havia proferido no plenário virtual, como o fez em conjunto com Mendes e antes de iniciar o julgamento físico. Ainda que tenham tido a oportunidade de debater e/ou acompanhar o voto conjunto durante a sessão no plenário físico, não está claro se outros ministros tiveram a oportunidade de participar da construção do voto conjunto.
Segundo, foram aprovadas cinco teses ao final do julgamento, algumas divididas em subitens, mesmo em controle abstrato de constitucionalidade. Ou seja, fora do que é previsto pelas regras procedimentais. Embora essa não seja uma inovação, vale a ressalva de que exceto casos pontuais de relatoria distinta, é o ministro Barroso que propõe teses em praticamente todas as ações diretas sob sua relatoria. Terceiro, trata-se de pauta em conjunto de mais de uma ação direta.
Quarto, o ministro Cristiano Zanin explicou que embora seu antecessor já tivesse apresentado voto no plenário virtual quanto ao mérito das ações, não participou da votação das teses. Por essa razão, solicitou ao presidente a oportunidade de debater e votar nas teses. Barroso observou que a “única questão relevante aqui é a tese, porque, que o MP pode investigar nós já decidimos; que deve haver controle judicial, nós já decidimos. Portanto, (…) eu acho que vossa excelência pode se manifestar porque no fundo o que nós estamos debatendo é a tese”. Ao final, algumas das sugestões de Zanin foram incorporadas na redação das teses.
Aparentemente, a adoção de tais práticas decisórias em conjunto tornou a decisão mais deliberativa. Contudo, os fatores que contribuíram para esse cenário são contingentes. Como o próprio presidente afirmou, grande parte do debate se deu em torno da votação das teses. No controle abstrato, porém, não há previsão legal ou regimental para votação de tese como conclusão da decisão.
Além disso, o debate foi possível a partir da disposição de dois ministros de apresentarem voto conjunto e da afetação do julgamento ao plenário físico – o que tem lugar na minoria dos casos. Muitas teses são votadas no plenário virtual e lá há apenas um somatório de votos. Não se tratam, portanto, de mudanças decisórias permanentes. Dependem sobretudo da vontade do relator ou do presidente do tribunal.
Afinal, qual papel do presidente nessa mudança e do presidente Barroso, em particular?
A opção por um modo ou outro de decidir parece estar relacionada à compreensão individual do que o presidente acredita ser o papel do tribunal. Da determinação da pauta até a forma como convida ministros para votar – por exemplo, primeiro no mérito e depois na tese – há um inegável papel de coordenação exercido por Barroso na direção de que o STF seja um tribunal de teses jurídicas que possam orientar a boa aplicação do direito por todo país.
Por exemplo, no julgamento dos REs 599658 e 659412, Barroso reafirmou que “os vencidos só não aprovariam a tese da maioria se entenderem que a tese não reflete a vontade da maioria. Ministro Fux, eu sei que a tese diverge da posição de vossa excelência, mas acho que reflete a posição da maioria”. Nesse sentido, posições individuais eventualmente divergentes são conduzidas para formação de um consenso prestigiando uma decisão única do tribunal.
Outro aspecto do processo decisório que contribui para essa decisão única não é exatamente novo e parece ganhar mais espaço entre os ministros: reuniões internas, mas não para resolver questões administrativas e, sim, o mérito dos processos. Em mais de uma oportunidade, o presidente mencionou na abertura da sessão de julgamento “nós demoramos porque o consenso foi difícil de atingir”.
Essa observação vai de encontro com discurso seu no sentido de a deliberação ser ainda “comprometida pelo fato de que a gente delibera em público (…) e, geralmente, na maior parte dos tribunais do mundo, (…) o processo deliberativo é interno”. E, também, de encontro com pronunciamento recente (RE 1385315), onde afirma que “o Supremo é um dos únicos tribunais do mundo em que o debate é feito à luz do dia com toda a transparência para que as pessoas possam inclusive acompanhar o tipo de raciocínio e de fundamentação. Tem ônus trabalhar na frente da televisão, mas tem alguns proveitos de transparência e do didatismo que a gente está procurando fazer coletivamente.”
Certamente, uma posição individual do ministro é reforçada pelos poderes que assume enquanto presidente do tribunal. Ele poderia, por exemplo, ter negado a participação de Zanin e dos ministros vencidos na construção da tese, ou até mesmo optado por não colher votos em separado para a tese. Entretanto, sua liderança, por si só, não seria capaz de mudar o modelo decisório. Pelo menos nesse caso, para além do consenso quanto à questão de direito debatida, houve a concordância dos demais ministros quanto à adoção de novas práticas decisórias. Se eles teriam competência para promover tais mudanças no processo constitucional é um outro debate.
Com propostas externas de reformas batendo à porta, é importante acompanhar caminhos endógenos de mudança institucional. Por um lado, a construção conjunta da solução e enfoque no consenso reduz o caráter solista das decisões do STF, que, afinal, poderá ter algo próximo à “opinião da corte”. Por outro, a importância desse ganho deliberativo diminui à medida da aleatoriedade no uso de práticas como tese, voto conjunto, pauta conjunta, destaque para o plenário físico. Isto é, caso sejam adotados incentivos deliberativos em um processo e não em outros, não há que se falar em transmutação do modelo decisório e, sim, em experiências pontuais que eventualmente favorecem uma decisão colegiada ideal.