Segundo reportagem recentemente publicada na imprensa, o bicheiro Capitão Guimarães foi beneficiado por decisão anteriormente proferida, em outro caso, pelo então ministro Ricardo Lewandowski no STF, que havia considerado, no HC 222141, ilegal a preservação de provas em contas de e-mail antes de ordem judicial.
No caso envolvendo o HC 222141, o Ministério Público do Paraná, em 22 de novembro de 2019, havia solicitado aos provedores Apple e Google que realizassem a preservação dos dados e IMEIs (identificação internacional de equipamento móvel) das contas vinculadas aos sócios da empresa Infosolo.
Buscou-se a preservação dos dados em favor da investigação relativa à Operação Taxa Alta, relacionada ao credenciamento de empresas para serviços de registro eletrônico de contratos. O congelamento das informações cadastrais, histórico de localização e pesquisas, conteúdo de e-mails, mensagens e hangouts, fotos e nomes de contatos destinava-se à preservação dos dados, que poderiam ser utilizados na investigação.
Contudo, em decisão proferida em dezembro de 2022, o ministro Ricardo Lewandowski, ao analisar a medida, considerou nulas todas as provas que haviam sido obtidas de uma conta de e-mail em razão de previamente o Ministério Público ter pedido aos provedores de internet, sem autorização judicial, que ocorresse a preservação dos dados.
Segundo o ministro, o STF entende que a Constituição protege o sigilo das comunicações em fluxo e o direito constitucional à privacidade e tutela o sigilo das comunicações armazenadas. Outrossim, o Marco Civil da Internet, quando trata da proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas, admite o fornecimento de informações de acesso em razão de solicitação do Ministério Público ou das autoridades policiais ou administrativas, sendo, porém, necessária, prévia autorização judicial.
A preservação dos dados de e-mail, localização, mensagens etc. de um investigado no curso de uma investigação, sem prévia autorização judicial e sem o órgão requerente ter acesso ao teor dos dados preservados, realmente viola o direito à privacidade e o sigilo das comunicações armazenadas?
A vida em sociedade pressupõe uma relação de equilíbrio entre os direitos de todos os indivíduos, resultando em deveres a todos, que renunciam a parte dos seus direitos, assumindo uma série de obrigações, em favor do Estado e da vida junto à coletividade. É impossível a existência de direitos absolutos em sociedade, sob pena de alguém ter que arcar com a permanente relativização dos seus direitos.
Nesse cenário, surgem instrumentos de manutenção desse equilíbrio, como é o caso do sistema de justiça criminal[1], que, em caso de violação de normas de natureza criminal, atuará por meio da persecução penal, especialmente o processo penal. Este surge primeiramente como um mecanismo de garantia dos direitos e garantias individuais do acusado, que tem direito a um “julgamento justo”, por meio da observância e o respeito aos seus direitos fundamentais.
O processo penal, porém, deve buscar uma solução processual eficaz, eficiente e efetiva, como forma de resguardar o direito da sociedade à segurança, os direitos fundamentais da vítima e restabelecer o equilíbrio social, violado em razão da prática do ilícito penal.
Em decorrência dessa constante busca de reequilíbrio social e de ponderação entre os direitos fundamentais do acusado de um lado e os direitos fundamentais da sociedade e da vítima do outro lado que a persecução penal, em suas duas fases (investigativa e processual), deverá sempre atuar em consonância com a mensuração do direito que deverá prevalecer, sem excluir por completo o direito contraposto, em cada situação.
Para se iniciar uma investigação, é necessária a existência de elementos mínimos de materialidade delitiva, para que então se possa apurar os fatos. No curso das investigações, caso seja necessária a adoção de medidas mais incisivas, que afrontam de maneira mais forte os direitos e garantias fundamentais do investigado, como é o caso das medidas de busca e apreensão, quebras de sigilos (bancário, fiscal, telefônico, telemático), interceptação telefônica etc., exige-se a presença de elementos mais robustos de materialidade, fortes indícios de autoria e indispensabilidade da medida (ausência de outros meios menos invasivos), em razão da fragilização de inúmeros direitos fundamentais do acusado, como o direito à privacidade, o direito à intimidade etc.
No momento da concessão dessas medidas, prevalece o interesse público a uma persecução penal eficaz, em busca da proteção do direito à segurança e dos direitos das vítimas, ante o estágio indiciário e probatório atingido pela investigação. Contudo, a análise da prevalência do interesse investigativo, a justificar tais medidas, será realizado pelo juiz, necessitando, desse modo, de decisão judicial
Quando se atinge o patamar de certeza da materialidade e de indícios fortíssimos de autoria (maior do que os acima mencionados), surge o momento de ajuizamento da ação penal, que, após o recebimento (necessidade de decisão judicial), encerrará a fase investigativa da persecução e iniciará a fase processual. Após a instrução fática e probatória em juízo, submetida ao contraditório e à ampla defesa, será proferida decisão, que será condenatória apenas se atingir o patamar de certeza jurídica (condenação – necessidade de decisão judicial).
Observa-se que, a todo instante, há uma constante relação de “disputa” entre os direitos e garantias fundamentais do acusado e os direitos e garantias fundamentais da sociedade e da vítima, devendo um prevalecer em face do outro (sem excluir o outro totalmente) a depender do momento da persecução penal, com base na robustez fática e probatória relativa ao caso. Os casos de maior restrição aos direitos e garantias fundamentais do acusado, como são as situações de medidas de quebra, busca e apreensão etc., início da persecução penal processual e condenação, necessariamente precisam de decisão judicial.
Tal situação não ocorre quando, no curso de uma investigação, busca-se a preservação de dados em favor de uma investigação (ex.: dados telefônicos, e-mail etc.). Não se está atingindo um direito fundamental do acusado, como a privacidade ou a intimidade, pois a medida objetiva apenas assegurar que o conteúdo, que não se tem acesso nem conhecimento do teor, possa vir a ser utilizado, após autorização judicial, em uma investigação. Objetiva-se, em verdade, proteger o outro polo da relação de disputa entre direitos fundamentais, composto pelos direitos fundamentais da sociedade e das vítimas, materializado pela investigação.
A desnecessidade de decisão judicial para preservação do conteúdo é resultante da robustez dos elementos fáticos e probatórios colhidos no curso da investigação e da ausência de mácula aos direitos fundamentais do acusado. Quando esses direitos (do acusado) forem atingidos, ou seja, com o acesso ao conteúdo dos dados, necessitará previamente de decisão judicial. Antes, porém, quando não se tem acesso ao conteúdo, busca-se apenas garantir a eficácia da persecução penal (impedindo eventual destruição de provas), objetivo necessário para o restabelecimento da ordem jurídica violada, essencial para o restabelecimento do equilíbrio da vida em sociedade, que não comunga com a prática de crimes, que deverá ser evitada/punida.
[1] Sistema formado pela Política Criminal, Direito Penal e Direito Processual Penal.