Desde a promulgação da nova Lei de Improbidade Administrativa, em 26/10/2021, diversas das 192 modificações introduzidas pela Lei 14.230/2021 passaram a ser objeto de intensos debates na doutrina e na jurisprudência, tendo resultado, inclusive, na consolidação de múltiplas teses de caráter vinculante por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), persistindo, todavia, relevantes incertezas na sua aplicação.
Nessa perspectiva, ainda em 2021, por meio do Tema 1.199, o STF firmou entendimento no sentido de que a nova regra de prescrição, prevista no art. 23, não teria aplicação retroativa, estabelecendo que, para os processos em curso, o prazo deveria ser contado a partir da data de publicação da nova legislação.
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Todavia, escapou do alcance da análise do Supremo, por não estar englobado no objeto da ADI, a questão envolvendo a prescrição intercorrente, que prevê a redução do prazo prescricional, bem como a idoneidade dos marcos interruptivos fixados pelo legislador, matérias que são objeto da ADI 7.236.
Ocorre que a demora na análise dessas questões ocasionaria automaticamente, a partir do dia 26/10/25, a extinção de milhares de processos de improbidade que estão em grau recursal[1].
Por conta desse risco iminente, na data de 23/09/25, o STF, em decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, no bojo da ADI 7.236, suspendeu, de forma provisória, a eficácia da expressão contida no § 5º do art. 23 da lei de improbidade administrativa, que prevê a redução do prazo prescricional, fazendo incidir a prescrição geral de oito anos.
O fundamento principal da decisão é que a redução do prazo prescricional pela metade fragiliza o sistema de responsabilização por improbidade, comprometendo sua efetividade, na medida em que não haveria tempo hábil para as sentenças absolutórias serem revistas pelos tribunais, sobretudo, dada a omissão legislativa, quando o ajuizamento da ação interrompera a prescrição, mas a sentença não.
Na oportunidade do exame de mérito, a corte poderá confirmar a suspensão cautelar — declarando a inconstitucionalidade do dispositivo legal — ou, alternativamente, revogá-la, reconhecendo a constitucionalidade do referido artigo e, por consequência, restabelecendo o prazo quadrienal para a configuração da prescrição intercorrente.
O mérito da questão evidencia o desafio de se enfrentar um conflito de princípios e direitos fundamentais, no qual se defende, de um lado, que os quatro anos para prescrição intercorrente, estabelecidos pelo legislador ordinário, homenageiam o princípio (direito fundamental) da duração razoável do processo, para além de gerar segurança jurídica a gestores públicos, e, de outro lado, que a exiguidade do prazo fragiliza, de forma desproporcional, a devida tutela estatal ao direito fundamental à probidade administrativa.
Deverá a Suprema Corte, assim, à luz do princípio da unidade constitucional, que impõe ao intérprete o dever de buscar harmonia entre os ditames constitucionais, lançar mão da ponderação de bens como método para resolução desse conflito entre princípios constitucionais, solucionando a tensão interna surgida em seu seio.
Cuida-se de se admitir que o conflito entre princípios não se dá no plano da validade (como ocorre com regras), mas no plano do peso, razão por que os princípios podem oferecer soluções opostas sem que isso configure incoerência no sistema, demandando, para a resolução, a análise do caso concreto, considerando as variáveis fáticas que indicarão o peso específico de cada princípio em confronto.[2]
Na aplicação da ponderação de bens, o princípio da proporcionalidade exerce papel central. É sob sua égide que devem ocorrer todas as restrições recíprocas entre princípios constitucionais, revelando-se fundamental no controle de constitucionalidade dos atos estatais, pois possibilita penetrar no mérito dos atos normativos, verificando sua razoabilidade e racionalidade.[3]
Aliás, como observa Humberto Ávila, as leis podem sempre passar pelo crivo da proporcionalidade perante o Poder Judiciário, viabilizando o exame de sua adequação com o contexto constitucional.
Isso porque incumbe ao Poder Judiciário “avaliar a avaliação” feita pelo Legislativo (ou pelo Executivo) relativamente à premissa escolhida, justamente porque o Legislativo só irá realizar ao máximo o princípio democrático se escolher a premissa correta que melhor promova a finalidade pública que motivou sua ação ou se tiver uma razão justificadora para ter se afastado da escolha da melhor premissa.[4]
A avaliação ou teste de proporcionalidade, a partir da verificação da proporcionalidade em etapas argumentativas, autoriza exames em dimensões diversas, transitando pelas análises da adequação (que exige que a medida adotada seja apta a alcançar os objetivos pretendidos), necessidade (impõe a escolha do meio menos gravoso entre os disponíveis para atingir a finalidade) e proporcionalidade em sentido estrito (demanda que os benefícios da medida superem as desvantagens que ela causa, equilibrando custos e resultados).[5]
Assim, uma norma será proporcional se for idônea, necessária e equilibrada em termos de custos sociais e benefícios, podendo ser realizada na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas.[6]
Urge salientar, nessa medida, que o manejo da ponderação não se afigura irracional nem arbitrária, mas um mecanismo legítimo para assegurar a convivência entre direitos fundamentais em situações de colisão, notadamente porque o seu resultado deve sempre ser avaliado sob critérios racionais, especialmente o princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão.[7]
Em outros termos, o princípio da proporcionalidade reforça a necessidade de critérios racionais e disciplinares na resolução de conflitos e ponderação de bens, contribuindo para limitar arbitrariedades e equilibrar direitos, interesses e valores constitucionais. Sua importância reside menos em fornecer respostas fechadas e mais em garantir um processo estruturado de deliberação e justificação racional.[8]
É nesse panorama de atenção à teoria dos direitos fundamentais e de resolução do conflito de princípios constitucionais a partir da ponderação de bens, no caso concreto, sob o amparo do princípio da proporcionalidade, que deverá se decidir o mérito da ADI 7.236.
No ponto, ainda que não se questione o ganho em termos democráticos da estipulação de prazo prescricional, oportunizando segurança jurídica e incentivo à conclusão de investigações e processos em período razoável de tempo, é preciso, de outro lado, atentar que o exíguo prazo previsto pelo legislador ordinário para prescrição intercorrente gera sério risco de impacto, desproporcional, ao direito à probidade administrativa, não passando na avaliação ou teste de proporcionalidade que deve ser realizado quando da ponderação de bens.
Com efeito, a inclusão de um prazo prescricional intercorrente exíguo viola a proporcionalidade sob o ponto de vista da proibição da proteção insuficiente[9] ao direito fundamental à probidade administrativa, uma vez que interdita drasticamente a apuração e responsabilização dos agentes ímprobos.
Aduza-se que, conforme estudo do CNJ, destacado na decisão cautelar da ADI 7.236, o lapso temporal médio desses processos é superior a quatro anos[10], o que comprova o malferimento à tutela da probidade.
Igualmente, os marcos interruptivos da prescrição previstos na reforma legislativa não superam o juízo da proporcionalidade.
Veja-se que a fixação de marcos interruptivos para fins de brecar a marcha da prescrição intercorrente se deve à circunstância de que dados momentos processuais configuram-se como manifestações inequívocas da regular tramitação do processo e do compromisso do Estado no exercício do seu poder persecutório/punitivo.
Portanto, encerrada a fase instrutória e proferida a sentença, dentro do prazo fixado, cumpriu o Poder Judiciário o seu papel, independentemente da natureza desse provimento jurisdicional (condenatório ou absolutório). O que visa proteger a prescrição intercorrente é a procrastinação, a perpetuação indevida do processo, situações essas não existentes quando da prolação dos provimentos jurisdicionais.
O legislador ordinário, ao não fixar as sentenças de improcedências como marcos interruptivos da prescrição, além de permitir escavação interna[11] ao direito fundamental à probidade administrativa, pôs à margem o próprio direito fundamental ao devido processo legal, uma vez que interdita o princípio do duplo grau de jurisdição.
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Em conclusão, conquanto se deva admitir que a previsão de um prazo de prescrição intercorrente de apenas quatro anos seja adequada (dada a aptidão para se atingir um processo com prazo razoável), claramente não se mostra necessário (já que não há demonstração ou justificação de que a escolha de outro prazo, a exemplo de 8 anos, deixaria de permitir o atingimento da mesma finalidade) e, mais ainda, revela-se desproporcional em sentido estrito, pois os benefícios da medida não superam as desvantagens que ela causa, dado o sério risco de ineficácia da maioria das ações de improbidade administrativa, relevante instrumento de tutela do direito fundamental à probidade administrativa.
Sob esta ótica, a norma do art. 23, §5º, da lei de improbidade administrativa, não se afigura proporcional, sob o ponto de vista de idoneidade em termos de custos sociais, posto que afeta a realização, na maior medida possível, do direito à probidade administrativa.
Nessa medida, o que se espera do julgamento do mérito da ADI 7236, é a censura, à luz da ponderação de bens e do princípio da proporcionalidade, à norma do art. 23, §5º, da lei de improbidade administrativa, que não se coaduna com a matriz constitucional, sob o ponto de vista de coerência com os significados expressos na Constituição.
[1]O pedido cautelar apreciado pelo STF aponta o risco de extinção de cerca de 8000 processos de improbidade que estão em grau recursal, refletindo base de dados apenas dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
[2]ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2a. ed., São Paulo: Malheiros, 2017, p. 308-309.
[3]KLATT, Matthias; MEISTER, Moritz. The Constitutional Structure of Proportionality. Oxford University Press, 2012
[4]ÁVILA, Humberto, Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. Porto Alegre: Editora Malheiros, 2005, p. 125-126.
[5]ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 116-118 e 588-594.
[6]SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, n. 798, 2002, p. 23-50.
[7]SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais e a ponderação de bens. In. TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais, v. 2, 2001.
[8]LEÃO, Anabela Costa. O princípio da proporcionalidade e os seus críticos. LOPES, Dulce; COUTINHO, Francisco Pereira; BOTELHO; Catarina Santos (Org.). O princípio da proporcionalidade. XIII Encontro de Professores de Direito Público. Coimbra: Instituto Jurídico/FDUC, p. 127-159, 2021.
[9]SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016, p. 482.
[10]CNJ. Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015. Disponível em: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/handle/123456789/320.
[11]HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 264.