Precisamos de um novo Tribunal de Contas para o século 21?

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A configuração institucional articulada pela Constituição de 1988, ao redefinir os contornos do Estado democrático de Direito no Brasil, conferiu um especial e renovado destaque à função de controle, notadamente aquela exercida pelo Tribunal de Contas.

Esse redimensionamento não representou um mero ajuste burocrático, mas refletiu uma tentativa de captar as profundas transformações de paradigma que o Direito Administrativo e a própria Administração Pública vivenciaram nos anos finais do século 20.

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Contudo, passadas mais de três décadas de sua promulgação, a percepção dominante sobre o papel dessas cortes permanece, em grande medida, ancorada a uma visão tradicionalista, que as circunscreve a uma função repressiva e adversarial, focada na verificação da conformidade legal-formal dos atos de gestão.

Tal perspectiva, embora historicamente justificada, mostra-se hoje anacrônica e insuficiente para responder às complexidades da governança pública contemporânea, que demanda não apenas a sanção reativa a desvios, mas a construção proativa de soluções eficazes para problemas públicos cada vez mais multifacetados e interdependentes.

Neste cenário, emerge com urgência uma questão fundamental, que desafia tanto a doutrina quanto a prática institucional: haveria suporte teórico e embasamento normativo sólidos para um reposicionamento funcional dos Tribunais de Contas, permitindo que transcendam sua atuação como meros fiscalizadores para se afirmarem como instâncias de articulação interinstitucional, capazes de participar ativamente da construção, implementação e aprimoramento de políticas públicas?

A resposta, defende-se aqui, é inequivocamente afirmativa. A transição de um paradigma administrativo hierarquizado para um modelo democrático e dialógico não só permite, como exige, essa releitura.

A metamorfose da administração e o imperativo de um novo controle

O século 20, em seu curso, testemunhou uma releitura profunda das atribuições do Estado, que se deslocou da figura de titular de um poder de império, expresso por atos monolíticos e unilaterais, para assumir um viés mediador e garantidor, voltado a assegurar a eficácia do elenco de direitos fundamentais.

A concertação administrativa, baseada no reconhecimento de múltiplos feixes de inter-relações sociais, aparece como a metodologia de administração informada pelo consenso, realinhando a burocracia para prestigiar fins, e não meios. Neste sentido, a consensualidade se torna uma técnica de coordenação de interesses que potencializa a ação do Estado e da sociedade.

Se o exercício do poder político se transforma de maneira tão substancial, é certo que o controle, como sua contraface indissociável, não poderia permanecer imune.

A noção tradicional, que atrelava a legitimidade da administração ao cumprimento de regras legais, fundou um modelo de controle apegado à forma do ato administrativo. Contudo, a vinculação da ação pública à boa administração e à efetivação de direitos impõe uma revisão profunda do escopo e dos parâmetros para atuação do controle externo.

A Constituição de 1988 foi o marco normativo dessa transformação no Brasil, afirmando os Tribunais de Contas como agências de accountability responsáveis não apenas pelo monitoramento financeiro, mas também pela qualificação da gestão pública.

A articulação interinstitucional como eixo da governança contemporânea

A implementação de políticas públicas, especialmente em democracias complexas e plurais como a brasileira, não é um processo trivial, tampouco decorre de ações isoladas das autoridades estatais. A complexidade dos problemas que surgem nas sociedades contemporâneas, onde convivem interesses diversos e conflitantes, não se compadece com a racionalidade única e monopolista que antes presidia a ação governamental.

Surge daí a premência na adoção de estratégias de governança interinstitucional, capazes de minimizar conflitos e reforçar a eficácia da ação governamental ao erigir espaços de diálogo onde os atores possam colaborar na construção das políticas.

A articulação, nesse sentido, se apresenta como uma forma de interação social entre organizações que visa a coordenar ações e desenvolver ajuda mútua, notadamente através do intercâmbio de informações e recursos. A sinergia resultante cria vantagens que a atuação isolada de cada ente dificilmente alcançaria.

A Constituição de 1988, ao expandir os mecanismos de controle, participação e transparência, tornou o ambiente institucional para a formulação e execução de políticas públicas ainda mais complexo. Os gestores públicos precisam se relacionar, simultaneamente, com três sistemas: o representativo (partidos e eleitos), o participativo (conselhos, sociedade civil) e o de controles burocráticos.

Diante dessa arquitetura, a questão que se levanta é se a atuação desses três sistemas pode gerar sinergias positivas. Acredita-se que sim, especialmente no que tange às instituições de controle de contas, que devem redimensionar sua atuação para fortalecer o diálogo em redes de governança pública.

É preciso ir além da função de accountability financeiro estrito para situar esses organismos na rede de governança orientada à construção de boas políticas, atuando não sob o viés contestatório, mas pela lógica da coprodução de conhecimento.

Os órgãos de contas, por dominarem a linguagem da política pública e deterem um vasto repositório de dados orçamentários, financeiros e gerenciais, estão em posição privilegiada para facilitar não apenas a coprodução de evidências, mas também a decodificação dessa linguagem para o público, fomentando o engajamento social.

Essa transversalidade das suas funções, sob a lógica da articulação, tem o potencial de prover ganhos significativos, como: (i) melhorar o fluxo informacional para o planejamento; (ii) aprimorar os diagnósticos de problemas públicos; (iii) incorporar novas opções políticas ao horizonte de alternativas do gestor; (iv) fomentar o aprendizado institucional contínuo; e (v) reduzir os custos do próprio controle, ao criar padrões de autovinculação através de compromissos articulados.

Desafios, possibilidades e caminhos para concretização

Essa linha de atuação, embora traduza uma ampliação do espectro funcional das cortes, não deve consubstanciar o propósito de determinar a forma ou conteúdo das decisões políticas. Não se pretende que os órgãos de controle se imiscuam na atribuição política dos administradores, mas sim que a função articuladora dos tribunais auxilie a administração a alcançar os escopos que a sociedade dela exige e que a Constituição ordena.

Esse modo de atuação não carece de lastro normativo. O Decreto 9.203/2017 elege como diretriz, em seu art. 4º, IV, a necessidade de “articular instituições e coordenar processos para melhorar a integração entre os diferentes níveis e esferas do setor público, com vistas a gerar, preservar e entregar valor público”.

No plano prático, há mecanismos que já refletem essa possibilidade de articulação. Um caminho inovador se materializa na participação dos Tribunais de Contas em fóruns de governança colaborativa, como os Gabinetes de Articulação para Efetivação das Políticas de Educação.

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Essas instâncias constituem um exemplo paradigmático de governança interinstitucional, reunindo representantes dos três poderes, da sociedade civil e do controle externo, com o objetivo de articular diferentes perspectivas para o aprimoramento da política educacional.

Conclusão: um chamado à reimaginação institucional

O aprimoramento contínuo do processo de políticas públicas para a plena consecução dos objetivos abrigados na Constituição de 1988 é um imperativo para o Estado brasileiro.

Para tanto, faz-se imprescindível romper as interdições que decorrem de visões atomistas e equivocadas sobre os arranjos institucionais, sobretudo quanto à atuação dos organismos de controle externo. A complexidade crescente do cenário social evoca a necessidade de cogitar alternativas que suscitem a ação coordenada dos atores institucionais para a construção de boas soluções aos problemas públicos.