Preâmbulo: decifrando o caos

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Foi ali, nos bancos da faculdade de Direito, que muitos de nós conhecemos pela primeira vez aquela palavra longa, solene, quase mística: jurisprudência. Pronunciada com certa reverência pelos professores, prometia harmonia e uniformidade na interpretação do Direito.

No frescor da juventude jurídica, imaginávamos um sistema organizado, onde decisões dialogavam entre si, construindo uma rede firme de previsibilidade e justiça. Era o momento do flerte — aquele em que se olha de longe, encantado, sem conhecer as controvérsias da convivência.

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Eis que passamos à prática. Uma pesquisa para um parecer, um levantamento de precedentes para subsidiar uma contestação, análises aprofundadas de decisões para subsidiar trabalhos de consultoria ou contencioso… e pronto, a realidade se impõe.

O imaginado consenso não aparece com a esperada clareza quanto aos fundamentos jurídicos, sendo mais perceptível mesmo na parte dispositiva das decisões, na repetição de resultados. Tal cenário nos conduz a um caminho (certo ou errado) que simplifica bem o objetivo inicial, muitas vezes limitado a apontar o sentido da maioria das decisões identificadas entre favorável ou contrária ao cliente. É o momento da frustração.

Vamos fazer uma pausa neste ponto para repensar o uso da jurisprudência, com especial atenção ao ramo tributário. É isso que se pretende na série de artigos Jurisprudência Tributária na Prática, que iniciamos no JOTA com este artigo.

Encontros e desencontros

A jurisprudência tributária está no auge da sua forma, crescendo a olhos vistos – em quantidade e em qualidade – e produzindo efeitos nunca vistos, destacando-se entre as fontes do Direito.

Mas, por que temos a sensação de que tal evolução, ao invés de aperfeiçoar, torna mais difícil a prática do Direito Tributário?

Sem a pretensão de descobrir uma única causa definitiva, podemos apontar como um dos motivos a sua natureza de direito de sobreposição.[1] Trata-se de um ramo autônomo do Direito que convive com institutos, conceitos e formas de direito privado com definição, conteúdo e alcance próprios, aos quais se submete na definição e limitação de competências tributárias,[2] conforme comando expresso do Código Tributário Nacional em seu artigo 110, que diz:

“A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.

Ou seja, a compreensão do Direito Tributário e da sua jurisprudência demanda o domínio de institutos e conceitos definidos (também) por outros ramos do Direito. Seu produto é fruto desse caldo de normas e realidades, cabendo ao intérprete da norma tributária lidar com seus efeitos sob o fio condutor formado pelas diretrizes definidas pela Constituição Federal e pelo CTN.

Tal complexidade causa boa parte dos desencontros – excepcionados por encontros – verificados na jurisprudência tributária; não aquela aprendida nos bancos da academia, mas na sua perspectiva prática, que ecoa das decisões proferidas diariamente em resposta à demanda de players do Sistema Tributário Nacional (STN).

Ao julgador são apresentados os fatos sobre o problema ocorrido entre o pagador e o cobrador do tributo, que demanda uma solução baseada na lei, mas não, necessariamente, numa norma específica – como um remédio específico a uma doença diagnosticada.

Bem diferente disso, o julgador deverá buscar a solução antes identificando a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado presentes dentre tais fatos, para, depois disso, avaliar a lei tributária aplicável. Ao mesmo tempo, pesquisará decisões já emanadas por seus pares em suas diferentes instâncias, preferencialmente em casos análogos, a começar por aquelas que lhe sejam vinculantes.

Tanto que fazer…

Com humildade – aquela do poema de Cecília Meireles, “tanto que fazer!
livros que não se lêem, cartas que não se escrevem
(…)” – arregacemos as mangas, façamos a leitura e análise dos julgados em busca da melhor compreensão dessa língua que é a jurisprudência tributária, hoje um verdadeiro manancial de normas.

Há mesmo muito a fazer, porém, o que, no passado, se buscava por dias a fio em consulta a volumosos livros alinhados em prateleiras não sem auxílio técnico de bibliotecários, hoje se alcança muito mais rapidamente por meio de pesquisa digital.

Os sites de tribunais ou de busca, assim como aplicativos específicos, apresentam resultados em segundos, acompanhados de gráficos de estatística de decisões favoráveis ou desfavoráveis, por tribunal, por julgador, por período e até mesmo por contribuinte.

A antiga pesquisa de jurisprudência que, com sorte, resultava em alguns poucos julgados sobre a matéria e interesse, foi superada por poderosas ferramentas de jurimetria, que contribuem com a previsão do resultado da demanda, por meio do uso de dados categorizados.

Esse movimento, que conta com a contribuição da ciência de dados, não se restringe às mãos de advogados) e estagiários. Ele se estende e é ainda mais desenvolvido pelos próprios tribunais, que hoje já investem até em inteligência artificial generativa, capaz de produzir, gerar conteúdos e elaborar textos, como minutas de ementas com o resumo do entendimento do julgador sobre a matéria em questão.[3]

Sim, já passamos da expectativa à realidade nesse tema. Afinal, aquela pesquisa manual realizada em compêndios como a Revista dos Tribunais não era capaz de produzir sequer uma ideia sobre o volume de decisões sobre a matéria pesquisada, tampouco se havia variação em função de diferentes classes processuais.

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Esse movimento parece ser especialmente importante no atual contexto da reforma tributária, que demanda dos profissionais reconhecer o que ficou no passado e as raízes (se existirem) do futuro já previsto em lei, ao que a jurisprudência tem muito a contribuir por sua natureza dinâmica e complexa.

Do flerte a uma relação estável

“Cidadãos assinando papéis, papéis, papéis… até o fim do mundo assinando papéis. (…) E fizemos apenas isto. E nunca soubemos quem éramos, nem pra quê”.

Por certo, nenhum operador do Direito quer essa história para si. Preferível mesmo lê-la em Cecília Meireles.

Então, é chegada a hora (se ainda não passou) de retomar o flerte com essa essencial fonte de normas jurídicas e romper a frustração de usá-la apenas como ferramenta de pesquisa entre decisões pró ou contra os contribuintes, porque precisamos praticar o estudo empírico do Direito Tributário e o seu aperfeiçoamento.

É sobre jurisprudência e prática dos tribunais que falaremos nos próximos dias. Até o mês que vem!


[1] XAVIER, Alberto. Manual de Direito Fiscal I (Reimpressão), Manuais da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa 1981, p. 22 e 23.

[2] NETO, Luís Flávio. Entre o amor e a indiferença: vamos discutir a relação? O relacionamento do Direito Tributário com o Direito Privado e o caso da permuta de ações sem torna. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 38, 2017, p. 98.

[3] Um exemplo recente no âmbito do STF é a MARIA, ferramenta de inteligência artificial com o objetivo de remodelar a produção de conteúdo no Tribunal, conforme afirmou o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, durante a cerimônia de lançamento no STF (Disponível em https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-lanca-maria-ferramenta-de-inteligencia-artificial-que-dara-mais-agilidade-aos-servicos-do-tribunal/ Acesso em mai/2025)