Prática de crimes durante enchentes no RS e dialética entre repressão e compreensão

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A catástrofe das enchentes no Rio Grande do Sul detonou muitos exemplos de altruísmo e solidariedade. Também deram ensejo, de outro lado, à prática de delitos (roubos, furtos e crimes sexuais), como, infelizmente, sói acontecer nesses casos, a exemplo da explosão de crimes pós-furacão Katrina, em Nova Orleans (EUA), em 2005.

O estado generalizado de vulnerabilidade tem, assim, duplo sentido: aqueles afetados pela catástrofe podem realizar fatos típicos premidos pela necessidade, ao passo que outros se valem dessa vulnerabilidade como facilitador de delitos.

Para o segundo grupo de casos, há agravante prevista no art. 61, II, “j”, do Código Penal, [1] desde que haja nexo causal entre a circunstância (calamidade) e a conduta do agente (STJ, AgRg no HC n. 717.298/SP, rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 2/3/2022), com discussão recente por conta da pandemia de Covid-19 (AgRg no AREsp n. 2.194.255/SP, rel. Min. Olindo Menezes, DJe 28/10/2022).

Naturalmente, move-se o Congresso por legislação de emergência, a exemplo dos PL 1799, 1839 e 1861 e 1799, todos de 2024, que buscam agravamento adicional para referida circunstância, e do PL do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), propondo tipo contra o patrimônio específico para catástrofes. Na mesma linha, a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), que propõe modalidade qualificada; segundo ela, “em meio a toda essa solidariedade, não bastasse os inevitáveis prejuízos causados pelo aumento do nível dos rios naquela região, grupos de criminosos, sem qualquer empatia, sensibilidade ou amor ao próximo, vêm se valendo do caos instalado para saquear casas, lojas e comércios”.

Sem ingressar de maneira mais aprofundada na profissão de fé da relação entre incremento de pena e dissuasão, não se pode perder de vista o primeiro grupo de potenciais autores de fatos típicos: aqueles em posição de vulnerabilidade.

O estado de necessidade representa uma excludente de ilicitude para “quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir” (cf. art. 24, CP). Refere-se a situações em que uma pessoa comete um ato ilícito para proteger um bem maior, como a própria vida ou a integridade física. Especificamente quanto ao furto famélico, no mais das vezes representará exclusão de tipicidade, sob a vertente material (delito insignificante), observado o baixo valor da comida subtraída.

Em um estado generalizado de calamidade pública o conflito entre bens jurídicos fica particularmente agudizado: quem subtrai um pouco de comida, para “salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, direito próprio ou alheio”, encontra-se em estado de necessidade; de quem se subtrai, provavelmente, também.

Restaria um debate em torno da razoabilidade da exigência do sacrifício ao bem jurídico.

Esse caminho contém diversas armadilhas.

A primeira é de ordem pragmática: ainda que se conclua que o sacrifício não era razoável, ainda assim pode-se excluir o crime por ausência de culpabilidade, na modalidade inexigibilidade de conduta diversa.

A segunda é lançar-se a um debate orientado por questões morais, notadamente o binômio egoísmo v. altruísmo, em que muito facilmente a expectativa passaria a ser a de um agir heroico (deixar-se morre de fome).

A terceira e mais importante é: em busca de uma solução justa, esquecer-se que a pena não é exercício estatal de reprovação moral. A pena é uma resposta estatal e deve sempre ser exercida nos estreitos limites constitucionais e administrativos.

A pena só pode ser exercida em prol do interesse público. De certa forma, isso já vem anunciado no próprio Código Penal, quando determina que a pena deve ser fixada conforme seja necessária e suficiente para a repressão e prevenção do crime.

A condição extraordinária de catástrofe já contém certo componente de irrepetibilidade, ou seja, as condutas praticadas pelos diretamente afetados devem ser interpretadas de maneira extraordinária.

Impor pena a quem se via em risco concreto de morte e agiu contra outra pessoa que igualmente se via em risco concreto de morte, pouco importando o juízo moral sobre as partes, seria um disparate.

Só se pode começar a pensar em criminalizar aquela conduta que fosse uma possibilidade concreta para o sujeito. O crime tem de ser uma escolha; não no sentido moral-axiológico, compreendida como um agir mau, mas no sentido republicano, que mede o súdito conforme a dignidade humana.

O Estado não pode exigir que alguém se deixe morrer de fome, deixando de avançar sobre os bens de terceiro, ainda que em posição de idêntica vulnerabilidade. Essa não é uma possibilidade concreta do súdito (ainda que alguém queira ver uma possibilidade concreta sob a ótico moral); logo, não pode haver crime.

De mais a mais, salvo negacionismos, as enchentes no Rio Grande do Sul decorrem de mudança climática, de um lado, e ausência estatal em termos de estrutura, de outro. Todas elas decorrentes de falhas do próprio Estado. Assim, “não se pode admitir que o Estado puna o cidadão por condutas que ele mesmo, direta ou indiretamente, provocou. É o princípio da confiança, no qual se baseia a relação entre o Estado e o cidadão. O Estado não pode criar armadilhas para depois punir os incautos”.[2]

[1] Quando o crime é praticado “em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido”.

[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2021, p. 123