Muito antes de ser tema de conhecimento público, nos anos 1950, pesquisas internas de grandes companhias petrolíferas já indicavam os perigos das suas atividades para o clima global. Mesmo a partir da década de 1980, com o Relatório Brundtland, quando se reconheceu a urgência de mudanças econômicas profundas, a atuação de agentes públicos e privados se manteve pautada por um moroso processo político que aceitou prejudicar as gerações futuras e as populações mais vulneráveis para manutenção de interesses financeiros imediatos.
Estes não são fatos novos tampouco desconhecidos. Apesar disso, a crise climática é frequentemente tratada como um problema civilizatório comum, que demanda uma agenda propositiva e difusa, sem responsabilização individual ou empresarial. No melhor dos cenários, essa abordagem resulta no reconhecimento de que os países do Sul Global, que historicamente poluíram menos, devem ser recompensados pelo custoso processo de transição energética.
Esse enquadramento dos eventos das últimas décadas como uma falha institucional ou uma simples divergência entre modelos econômicos contribuiu para mascarar a realidade: houve um processo deliberado de subjugação política da natureza, que agora se concretiza em desastres climáticos cada vez mais frequentes, com uma profunda transformação do modo de vida resultante dos danos significativos aos ecossistemas e à estrutura social. E essa realidade deve ser a peça central de uma resposta institucional e normativa ao problema.
Não basta uma transição com olhar futuro, mas, sim, uma agenda de transformação que implique alterações institucionais e clareza sobre vencedores e perdedores do processo que levou à crise climática. Essa nova perspectiva precisa reconhecer ampla e claramente a responsabilidade daqueles que permitiram ou contribuíram para que os desastres, que agora tão frequentemente nos afetam, ocorressem.
Afinal, se a necessidade de uma agenda mais clara de responsabilização já era tardia, mostrou-se urgente após os desastres recentes no Sul do país. A resposta oferecida pela noção de transição energética justa é insuficiente para responder a esses desafios, especialmente em áreas críticas como as zonas de sacrifício, que demandam uma agenda de reconstrução, responsabilização e superação.
Como, entretanto, promover um movimento de responsabilização centrado em direitos humanos que ao mesmo tempo reconheça a gravidade das ações tomadas (muitas delas legais à época) e garanta a observância aos princípios democráticos?
A resposta pode estar nas experiências de superação do autoritarismo e de violações de direitos humanos ao redor do mundo, onde movimentos de justiça de transição foram capazes de desempenhar um papel central em contextos de transição política após regimes autoritários ou conflitos armados.
A justiça de transição se refere ao conjunto de processos e mecanismos mobilizados por sociedades que passaram por períodos de exceção para lidar com as graves violações de direitos humanos e injustiças do passado. Esse conceito desempenhou um papel fundamental na promoção da memória, da verdade e da justiça e na superação do autoritarismo em diversos países.
Essa aproximação não tem razões apenas pragmáticas. As consequências experimentadas por sociedades pós-conflito e pós-desastres são notadamente similares. A escassez de recursos para atender às necessidades básicas da população, a ruptura do tecido social e a dificuldade de governança, seja por um conflito armado, como o que ocorre atualmente na Ucrânia, ou por um desastre, como o ocorrido em Chernobyl, ressaltam a necessidade de abordagens integrativas que promovam a justiça social e ambiental, garantindo proteção e resiliência às comunidades afetadas.
Uma abordagem de justiça de transição, já amplamente testada em contextos internacionais, regionais e nacionais, pode ser adaptada para a transição climática, incluindo desenvolvimento de sistemas de justiça que promovam esses objetivos de memória, verdade, reparação e não repetição, num processo que não se limita ao olhar da litigância climática.
Esta perspectiva pode servir para integrar tanto modelos de resposta a eventos climáticos extremos como também processos de transição político-econômicos mais amplos, sem deixar de incorporar critérios normativos que respondam a desigualdades e a vulnerabilidades preexistentes.
Recentemente, durante as sessões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) sobre emergência climática, o juiz Humberto Sierra Porto questionou justamente acerca do papel do tribunal na resposta jurídica ao desafio climático, considerando que, ao que lhe parecia, o próprio modelo econômico vigente seria a causa raiz da crise atual.
Nesse contexto, uma perspectiva de justiça de transição pode ser uma ferramenta crucial para a transição climática, oferecendo alternativas para conter, mitigar e reparar os danos ambientais e permitindo uma revisão holística dos impactos econômicos e sociais.
Uma justiça de transição climática pode dar contornos políticos e institucionais mais claros para uma agenda frequentemente acusada de ser irrealista. Pode também ser uma resposta à altura da gravidade do problema enfrentado.