Por um Direito Tributário apto para enfrentar desastres climáticos

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A catástrofe climática que assolou o Rio Grande do Sul no mês de maio deixou feridas ainda não cicatrizadas. Como refere o professor Delton Carvalho, “desastre é sempre uma triste derrota de uma comunidade em todos os sentidos: humanos, não humanos, econômicos, sociais e ecológicos”[1].

Infelizmente, a civilização sentirá, com cada vez mais frequência, desastres climáticos como este tristemente vivido no Rio Grande do Sul. Por esta razão é que o professor Daniel Farber defende a adoção de estratégias para enfrentamento do que chama ciclo dos desastres[2], identificado pelas fases de prevenção e mitigação, resposta de emergência, compensação e reconstrução. A proposta do presente texto é lançar um olhar da tributação para o enfrentamento do desastre.

A defesa do meio ambiente consta do texto constitucional desde a sua promulgação em 1988 (art. 225), sendo possível identificar interações com a tributação há muito tempo, quando já se falava em promoção do meio ambiente pela extrafiscalidade[3].

A reforma tributária veiculada pela Emenda Constitucional 132 em 2023 erigiu a tutela do meio ambiente como princípio norteador do Sistema Tributário Nacional (art. 145, § 3°). É inegável que a defesa do meio ambiente é uma diretriz para a organização do Sistema Tributário, porém a resposta aos desastres climáticos envolve um dilema de difícil solução.

Um desastre climático resulta na redução drástica da capacidade enômica dos contribuintes, de um lado, e expõe a demanda por recursos públicos expressivos, de outro. Se a capacidade do Estado em prestar socorro depende da arrecadação tributária, como imaginar que aqueles atingidos pelo desastre suportem contribuir com o custeio da máquina pública?

O enfrentamento da crise evidencia ainda mais a necessidade de responsabilidade fiscal, pois se as contas públicas estão desajustadas em uma situação de normalidade, não se pode esperar uma resposta adequada do Poder Público num cenário que exige recursos em maior vulto. Revela-se ainda mais importante zelar pela qualidade do gasto público, permitindo que as políticas públicas de enfrentamento às mudanças climáticas não sejam afetadas por escolhas de questionável relevância pelos parlamentares.

A solução para o problema passa por uma estratégia de gestão de recursos que possa fazer uma transição anticíclica de um cenário econômico favorável, para um contexto de calamidade pública. Essa transição envolve considerar o princípio da capacidade contributiva e o princípio da eficiência. Não resta dúvida que o princípio da capacidade contributiva deve orientar o período de normalidade e com maior razão a fase aguda do desastre. Não se pode exigir demasiadamente da sociedade, sob pena de reprimir a atividade produtiva que é essencial para o desenvolvimento do país.

Se a tributação atinge níveis elevados, a produção não é incentivada e a arrecadação inevitavelmente cairá. Por outro lado, uma vez instaurado o estado de calamidade pública, não se pode exigir que aqueles contribuintes atingidos pela catástrofe sejam compelidos a recolher tributos, quando a realidade que se impõe faz com que utilizem os parcos recursos para recuperar as perdas e salvar vidas.

Do mesmo modo, a Constituição impõe à Administração Pública o respeito ao princípio da eficiência (arts. 37 e 74, II), porém raramente se consegue confrontar os atos administrativos a partir deste critério. A gestão do dinheiro público deve buscar alocar da forma mais eficiente os escassos recursos públicos, visando maximizar o bem-estar social[4]. Logo, pensar num modelo de tributação que promova um benefício positivo líquido deveria ser a principal diretriz dos formuladores de políticas tributárias.

Em outras palavras, não se pode pensar num arranjo que beneficie alguns, mas o sacrifício suportado por outros seja superior ao benefício experimentado pelos favorecidos. É neste ponto que as estratégias de modelagem da tributação têm falhado miseravelmente. Por isso é que se sugere a incidência tributária sobre uma base ampla de contribuintes, a partir de padrões de consumo não sensíveis a oscilações de preço. Logo, essa parece ser a solução mais adequada e menos distorciva que as propostas de penalizar segmentos da economia[5].

A proposta não sugere a criação de um novo tributo, mas a substituição e unificação da miríade de incidências já existentes no sentido de buscar a eficiência alocativa ideal da carga tributária. Falar em eficiência é sobretudo reforçar a necessidade de qualificação da estrutura do gasto público e sobretudo em mecanismos que dificultem a captura do orçamento por grupos de interesse que acabam se apropriando do orçamento, deixando desatendidos os mais vulneráveis.

Foi dito por autoridades públicas que o desastre gaúcho exigiria um novo Plano Marshall. Ocorre que a arrecadação tributária no Brasil angaria um Plano Marshall por ano. Apenas para efeitos de comparação, a arrecadação de 2023 atingiu a marca histórica de R$ 2,204 trilhões, valor equivalente ao esforço orçamentário do Plano Marshall. Significa dizer que dispomos de recursos para reconstruir uma Europa a cada ano, porém claudicamos na resolução de problemas crônicos como saneamento básico e erradicação da fome e doenças.

Em reportagem da Folha de S.Paulo ficou evidenciado que os gastos do governo federal em 2023 foram majoritariamente destinados à recuperação de desastres (R$ 1,1 bilhão) e apenas R$ 36 milhões destinaram-se a medidas para evitá-los. As referências são suficientes para demonstrar que não faltam recursos, mas sobra ineficiência. Se queremos efetivamente pensar em soluções para os tristes eventos extremos que iremos enfrentar, lamento informar: a solução passe inevitavelmente pela questão fiscal.

[1] CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos Desastres. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[2] FARBER, Daniel. Disaster Law and Emerging issues in Brazil. Revista de estudos constitucionais, hermenêutica e teoria do direito (RECHTD), 4(1): 2-15 jan.-jun. 2012. Disponível em: <https://research.fit.edu/media/site-specific/researchfitedu/coast-climate-adaptation-library/latin-america-and-caribbean/brazil/Farber.–2012.–Disaster-Law–Emerging-Issues-in-Brazil..pdf>. Acesso em: 26 jan.2019

[3] CALIENDO, Paulo et ali. Tributação e Sustentabilidade Ambiental: A Extrafiscalidade como Instrumento de Proteção do Meio Ambiente. In: Revista de Direito Ambiental | vol. 76/2014 | p. 471 | Out / 2014 | Dez / 2014, DTR201420451.

[4] GICO JUNIOR, Ivo Teixeira. In: Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 16, n. 2, p. 1-43, maio-agosto, 2020.

[5]  KRUGMAN, Paul e WELLS, Robin. Introdução à Economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 169. CINTRA, Marcos. A verdade sobre o Imposto Único. São Paulo: LCTE, 2003.