Recentemente, a vice-presidência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu uma possível dissonância entre o julgamento, pela 4ª Turma da Corte Superior, do Recurso Especial 1.334.097/RJ, e o enunciado firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por meio do Tema de Repercussão Geral 786, que estabeleceu o regime de incompatibilidade entre a ideia de um “direito ao esquecimento” e os direitos fundamentais previstos pela Constituição Federal de 1988. O processo, autuado como RE 1.379.821/RJ e distribuído ao ministro André Mendonça, é relacionado à infame chacina da Candelária.
Para fins de contextualização, é relevante destacar que a noção de “direito ao esquecimento” decorre de uma defesa da possibilidade de remoção de publicações e, ainda, de inibição de novas produções que façam menção a determinado fato essencialmente por conta da passagem de tempo. Esse direito, que envolve impedimentos micro ou macro, desde situações individualizadas e até mesmo em interpretações históricas amplas, surge frequentemente em ambientes de debate público em oposição a um autoexplicativo “direito à história”.
O caso apreciado pelo STF, sob a ótica da repercussão geral, tinha vinculação com o relato de ocorrência criminosa que reverberou, sensivelmente, durante determinado período histórico, e que teve sua relevância restabelecida por ocasião da veiculação de um programa televisivo que abordou o assunto muito anos após o fato em si. Na hipótese, o STF considerou que a rede de televisão tinha o direito de contar a história como efetivamente ocorrida e que os familiares da vítima não poderiam impedir o acesso da sociedade aos fatos, justamente porque a ideia de um “direito ao esquecimento” não seria compatível, como dito, com a Constituição da República.
No novo processo que será trazido ao conhecimento do STF, o debate gira em torno dos fatos relacionados aos assassinatos e de suas repercussões judiciais. Novamente, o litígio envolve um programa televisivo veiculado anos após a ocorrência: a produção citou nome e condição de pessoa que inicialmente foi alvo de acusações, mas que posteriormente se viu absolvida. Embora todo esse contexto tenha sido trazido pelo programa, o indivíduo citado considerou o material infringente e buscou uma indenização em juízo.
O STJ, em acórdão datado de 2013, considerou as condutas da rede de televisão passíveis de indenização justamente por reconhecer “o direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal”. Após a decisão do Supremo que enunciou a incompatibilidade entre o “direito ao esquecimento” e a Constituição da República, os autos foram devolvidos ao colegiado para eventual juízo de retratação. A citada reconsideração, contudo, foi afastada sob o argumento de que o Supremo teria, na segunda parte da tese, possibilitado a sanção de eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão.
De fato, os eventuais abusos citados pelo STJ podem ser motivo de imposição de penalidades cíveis e criminais no Brasil. O que se vê, contudo, é que, na prática, a Corte Superior parece ter considerado abusiva a simples menção a fatos verdadeiros, relacionados a uma ocorrência de forte repercussão midiática. De acordo com o acórdão que será levado à apreciação do Supremo, a história teria que ser contada parcialmente para não incorrer em abusividade, com a exclusão do nome e da imagem de qualquer pessoa que tenha sido absolvida ou cumprido integralmente a pena arbitrada pelo Judiciário.
Por mais que a nova decisão do STJ, apresentada em juízo de retratação, tenha tentado afastar a conexão inicialmente realizada, a hipótese defendida pela Corte Superior tem potenciais conexões com a ideia de um “direito ao esquecimento”, expressamente afastada pelo Supremo porque, como visto, a abusividade da produção decorreu exclusivamente da ausência de omissão de fatos verdadeiros.
A esse respeito, é imprescindível destacar que o STF definiu no acórdão que suscitou a tese de repercussão geral que “um comando jurídico que eleja a passagem do tempo como restrição à divulgação de informação verdadeira, licitamente obtida e com adequado tratamento dos dados nela inseridos, precisa estar previsto em lei, de modo pontual, clarividente e sem anulação da liberdade de expressão. Ele não pode, ademais, ser fruto apenas de ponderação judicial”. O julgamento do STJ, inclusive aquele realizado em juízo de retratação, parece não ter enfrentado o argumento em referência. Especialmente porque, ao menos de acordo com a presente opinião, a condenação imposta tem vinculação direta com a ponderação judicial expressamente vedada pelo STF.
Aliás, mesmo que aplicável a ponderação, do que se verifica, o sopesamento de direitos parece pender para a preponderância de um “direito à história”, decorrente da lógica da liberdade de expressão tantas vezes reafirmada pelo STF — como, por exemplo, durante o julgamento da ADPF 130. Mas não é só. Embora ocorrido no início dos anos 90, o terrível episódio da Candelária é de uma contemporaneidade assustadora. Em 2023, dez pessoas foram assassinadas por dia no Rio de Janeiro e as milícias, originadas dos antigos comandos de extermínio, dominam o estado, mais fortalecidas do que nunca na região Sudeste do país. Sonegar informação da sociedade sobre o evento é impedir que ela consiga compreender e enfrentar o fenômeno da violência endêmica; é esconder a causa e abandonar a população vendada para lidar com a sua deletéria consequência.
A preocupação aqui esboçada é genuína. No direito comparado, a Decisão-Quadro 2008/913/JHA, proferida pelo Conselho da União Europeia, é uma norma que visa combater certas formas e expressões de racismo e xenofobia através do Direito Penal. Esse paradigma legal de construção da memória proíbe diretamente a negação, a banalização e a minimização de certos eventos, entre eles, o Holocausto.
O Direito, para o bem e para o mal, afeta o conhecimento histórico por meio de normas e decisões com o objetivo principal de adicionar ou retirar o peso de um conteúdo do passado. Imagine, em um exercício extremo de imaginação, que todos os governos se unissem para insistir que Luís XVI nunca foi guilhotinado. Tal esforço não tornaria a história revisada factualmente verdadeira, mas impediria a capacidade dos cidadãos de confirmar a ocorrência do evento. Isso tornaria a nova afirmação persuasiva, particularmente em um mundo — até mesmo na Europa, é bom dizer — onde muitos sabem pouco ou quase nada sobre a Revolução Francesa.
Possibilitar o apagamento de fatos verdadeiros e de relevância social por meio de decisões judiciais, como se vê, é medida absolutamente contrária ao desejo da Constituição da República, aos precedentes do Supremo e ao princípio democrático. O direito ao esquecimento não deve sobrepor a ética da memória, consubstanciada no direito universal à história. O senso de futuro é baseado, ainda que parcialmente, no conhecimento do passado. Como bem uma vez disse o Papa Francisco, ao tratar do genocídio armênio perpetrado pelo Império Turco-Otomano, “a memória nunca deve ser diluída ou esquecida. A memória é a fonte da paz e do futuro”.