Por um Brasil sem manicômios judiciários

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Vivemos um marco da política antimanicomial no país. Considerado o hiato de 22 anos existente entre a aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/2001) e sua aplicação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou em 2023 a Resolução CNJ 487/2023, que traz para o âmbito do Poder Judiciário a superação do modelo manicomial e a efetiva atenção psicossocial às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei.

Essa deliberação, embora tardia, retoma as premissas da referida legislação para implementá-la por meio do fechamento da porta de entrada dos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico (ECTPs) até o dia 28 de agosto deste ano. Neste entretempo, há pelo menos dois desafios a enfrentarmos: a noção da periculosidade como fundamento da existência dos manicômios judiciários, como são conhecidos esses dispositivos, e a centralidade das famílias como requisito para a (des)institucionalização dessas pessoas.

A primeira questão concerne ao ponto nevrálgico da manutenção das instituições de sequestro (FOUCAULT, 2013) que são os ECTPs: a persistência da noção da periculosidade para determinar a (des)internação das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei. Essa é uma noção perigosa, que lança um juízo para o futuro e condena essas pessoas ao enclausuramento ad aeternum (MPF/PFDC, 2011).

Apesar da rejeição a essa noção por diversos especialistas no assunto (BARROS-BRISSET, 2011; MPF/PFDC, 2011; QUINAGLIA SILVA, 2018a, 2018b; CAETANO, 2019), ela ainda pauta decisões judiciais. Associada à loucura, a “periculosidade” justifica a “defesa social” em detrimento do direito individual à saúde de pessoas que estão em sofrimento mental. Trata-se de uma noção obsoleta que legitima práticas de exclusão e desconsidera a “presunção de sociabilidade” (BARROS-BRISSET, 2010) dessas pessoas, a relação delas com suas comunidades e a responsabilidade da sociedade mais ampla e do Estado em específico no acesso que elas devem ter a serviços públicos essenciais, como a própria saúde.

Não à toa, pesquisas mostram que os ECTPs têm sido destinados à internação de pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas e são acusadas de perturbar a “ordem” social (QUINAGLIA SILVA e CALEGARI, 2018; ANTUNES, 2022). Ora, a concepção da loucura inclui(u) historicamente pessoas que não têm necessariamente transtornos mentais, e sim sujeitos que são socialmente indesejáveis.

Segundo o princípio da porta giratória (FOUCAULT, 2001), a loucura, ao entrar em cena, apaga o crime e destaca apenas a suposta “periculosidade” atribuída ao sujeito considerado louco. A propósito, as pessoas mantidas nos manicômios judiciários são, em sua maioria, pobres, pretas e pardas, com baixa escolaridade e profissões que exigem pouca ou nenhuma formação técnica ou qualificação (DINIZ, 2013; QUINAGLIA SILVA e CALEGARI, 2018; QUINAGLIA SILVA, LEVY E ZELL, 2020; LEVY, QUINAGLIA SILVA e BRAGA DA ROCHA, 2023).

Nesse sentido, um combate a ser ora travado não é apenas contra o manicômio judiciário, mas também contra o manicômio mental (PELBART, 1991), a mentalidade que criou (e cria) o sentido histórico e social da exclusão da loucura. Para tanto, deve haver um esclarecimento na esfera pública sobre a construção sócio-histórica da loucura e seus efeitos sobre pessoas com sofrimento mental, silenciadas e alijadas de seus direitos.

Uma atenção especial deve ser dada ao aprimoramento de políticas específicas de atenção psicossocial destinadas às pessoas dependentes de álcool e outras drogas. Uma estratégia seria investir nos CAPS AD, além dos demais CAPS (I, II, III e i) e outros serviços substitutivos à internação prolongada, para possibilitar um efetivo tratamento dessas pessoas em serviços de base territorial junto às suas comunidades, e não a contínua higienização para a “proteção” da sociedade.

Aliás, este é um ponto relevante: devemos ficar atentas/os aos serviços que devem ser doravante implementados para evitar a criação de novos espaços que reproduzam a velha lógica manicomial, como é o caso das comunidades terapêuticas. É a humanidade usurpada dessas pessoas que deve ser resgatada como pauta da agenda política.

Para além da persistência da noção da periculosidade como fundamento da existência do manicômio mental, mesmo após fechada a porta de entrada do manicômio judiciário, a segunda questão que será um desafio a enfrentarmos na política antimanicomial atual diz respeito à centralidade das famílias seja para a permanência seja para a saída dos manicômios judiciários.

A existência de um parente como requisito para a desinstitucionalização das pessoas que ocupam os ECTPs deve ser revisitada. Ao adentrar uma instituição total (GOFFMAN, 2010), vínculos reais e mesmo potenciais que essas pessoas tinham são desfeitos. Assim, ao se pensar a política antimanicomial e o fechamento dos ECTPs, é importante deslocar a responsabilidade da família para o Estado por meio da concessão de benefícios sociais (como o Benefício de Prestação Continuada e o Programa de Volta para Casa) e da oferta de serviços, como os CAPS, mencionados, e as residências terapêuticas, que independem da existência desses vínculos.

Nesse sentido, o “Manual da Política Antimanicomial do Poder Judiciário: Resolução CNJ 487 de 2023” do CNJ sustenta que “é necessário que se promova a extinção da condicionalidade ‘presença de familiar’ em processos decisórios de soltura dos sujeitos internados  (…), tendo em vista que o direito de liberdade do sujeito não pode estar submetido à responsabilidade de outra pessoa” (CNJ, p. 50, 2023).

Este é um ponto imprescindível a ser considerado quando da efetivação da política antimanicomial por meio da implementação de serviços substitutivos à internação prolongada: há dificuldade na desinstitucionalização de pessoas que têm vínculos familiares fragilizados e que moram afastadas dos grandes centros urbanos, onde, portanto, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) é pouco estruturada. Reiteramos: o Estado deve se responsabilizar pelo alcance dos benefícios sociais, pela expansão dos equipamentos da RAPS, sobretudo quando os vínculos familiares já não existem, e pela capilaridade da política, bem como pelo alinhamento do paradigma antimanicomial entre União, estados, Distrito Federal e municípios.

Por fim, para além do Direito e da Psiquiatria, que até o momento se apropriaram da loucura como objeto de sua ação repressiva, devem ser aprofundados  conhecimentos capazes de construir projetos terapêuticos singulares para essas pessoas que permaneceram esquecidas nesses espaços de clausura. Outrossim, será necessária uma articulação entre saúde e assistência social em um trabalho multiprofissional para o acolhimento e o efetivo tratamento dessa população.

Alguns caminhos exitosos, como o do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), que é um dispositivo conector entre a justiça e a saúde existente há 18 anos em Goiás, já foram trilhados (CAETANO, 2019). Conhecer portas de saída como essa pode ser uma ferramenta para que outros encaminhamentos, programas e políticas nos demais entes federativos sejam engendrados.

O dia 18 de maio, em 1978, foi escolhido como o Dia da Luta Antimanicomial, com a adoção do lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Depois de 46 anos, insistimos nesta bandeira: “Por um Brasil sem manicômios judiciários”.

ANTUNES, Sara Vieira Sabatini. Perigosos e inimputáveis: a medida de segurança em múltiplas dimensões. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2022.

BARROS-BRISSET, Fernanda Otoni de. Genealogia do conceito de periculosidade. Responsabilidades, v. 1, n. 1, p. 37-52, 2011. Disponível em: https://app.uff.br/observatorio/uploads/GENEALOGIA_DO_CONCEITO_DE_PERICULOSIDADE.pdf. Acesso em: 28 mai. 2024.

BARROS-BRISSET, Fernanda Otoni de. Rede é um monte de buracos, amarrados com barbante. Rev. Bras. Crescimento Desenvolvimento Hum., v. 20, n. 1, p. 83-89, 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12822010000100011. Acesso em: 28 mai. 2024.

CAETANO, Haroldo. Loucos por liberdade: direito penal e loucura. Goiânia: Escolar Editora, 2019.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual da Política Antimanicomial do Poder Judiciário: Resolução CNJ n0 487 de 2023. Brasília: CNJ, 2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/digital-manual-antimanicomial.pdf . Acesso em: 28 mai. 2024.

DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres: Editora Universidade de Brasília, 2013.

FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2013.

FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2010.

LEVY, Beatriz Figueiredo, QUINAGLIA SILVA, Érica e BRAGA DA ROCHA, Wesley. Narrativas em disputa sobre a loucura: da (re)produção discursiva sobre a periculosidade aos agenciamentos das internas em manicômios judiciários no Pará e no Distrito Federal. ANTROPOLÍTICA: REVISTA CONTEMPORÂNEA DE ANTROPOLOGIA, v. 55, p. 1-32, 2023.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL/PROCURADORIA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO. Parecer sobre medidas de segurança e Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico sob a perspectiva da Lei n0 10.216/2001. Brasília: MPF/PFDC, 2011.

PELBART, Peter Pál. Manicômio mental: a outra face da clausura. In: LANCETTI, Antônio. Saúde Loucura. São Paulo: Ed. Hucitec, p. 129-138, 1991.

QUINAGLIA SILVA, Érica. Absolvição Imprópria [filme etnográfico], 2018a. Disponível em: https://vimeo.com/328866211.

QUINAGLIA SILVA, Érica. A política pública de saúde mental e a construção do indivíduo “perigoso” no âmbito da medida de segurança no Distrito Federal. In: Rosana Castro; Cíntia Engel; Raysa Martins. (Org.). Antropologias, saúde e contextos de crise. 1ed. Brasília: Sobrescrita, v. 1, p. 74-85, 2018b.

QUINAGLIA SILVA, Érica e CALEGARI, Marília. Crime e loucura: estudo sobre a medida de segurança no Distrito Federal. REVISTA ANTHROPOLÓGICAS, v. 29, p. 154-187, 2018.

QUINAGLIA SILVA, Érica, LEVY, Beatriz Figueiredo e ZELL, Flávia Siqueira Corrêa. Dangerous women: The deviant duality of crazy offenders. ANUÁRIO ANTROPOLÓGICO, p. 28-53, 2020.