Por que reformar administrativamente o Estado brasileiro?

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Desde a PEC 32/2020, a necessidade de uma reforma administrativa tem ganhado espaço e visibilidade na mídia e na opinião pública. Mas quais as justificativas que dominam a narrativa em favor de uma reforma administrativa?

Breve análise da cobertura midiática indica que ela é vista como solução para superar arbitrariedades e disfuncionalidades da administração pública, que as tornariam “uma máquina de gerar desigualdades, pobreza, injustiça social e conflito civil”[1]. Mas será que a reforma administrativa seria esta solução milagrosa das mazelas do Brasil?

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As pesquisas sobre reformas administrativas de natureza abrangente e ambiciosa (como a da PEC 32) indicam que elas tendem a falhar. As causas variam, mas destaco as incoerências originadas pelos múltiplos e irracionais objetivos que se almejam, bem como as várias formas de resistência interna ou externa às mudanças propostas.

Por outro lado, a história das reformas mais impactantes da administração pública no Brasil revela que elas têm um denominador comum: o foco na racionalidade administrativa.

A reforma do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) instituiu a própria autoridade racional-legal, modernizou os aparatos burocráticos e administrativos do país e introduziu a meritocracia nos processos de seleção para o serviço público.

O DL 200/1967 tratou da divisão da administração entre direta e indireta com a criação de instrumentos de flexibilização da gestão pública, a diferenciação de propriedades públicas e privadas e a racionalização das próprias funções de administração, como planejamento, coordenação, descentralização, delegação de competência e controle.

O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, de 1995, por sua vez, reconectou as formas mais apropriadas de gestão e propriedades com as funções principais do Estado.

Cada uma destas reformas resgatou a racionalidade numa máquina administrativa que teima em ser sequestrada pela política ou pelo legalismo[2]. Cada um destes esforços reformistas precisou de sustentação política e gerou efeitos sistêmicos e consequências inesperadas, como qualquer processo de mudança social.

Construir esta sustentação política hoje, em face da excessiva polarização e de um debilitado presidencialismo de coalizão tornou-se uma tarefa hercúlea. O atual governo, adequadamente, tem optado por uma agenda de mudanças de natureza incremental, fazendo a reforma “do possível”.

Uma agenda incremental de reformas pode ser útil para frear a tentação do legalismo que corrompe a racionalidade da máquina administrativa e se manifesta em vários sintomas, como: o número excessivo de cargos e carreiras na esfera federal, com desníveis remuneratórios injustificáveis, agravados por argumentos jurídico-formais; a série de distorções orçamentárias e corridas de gastos no final do ano orçamentário, totalmente legais, porém irracionais do ponto de vista do planejamento e orçamento público; a proliferação de formatos como OS, Oscip, fundação estatal e SSA que buscam responder à mesma necessidade de colaboração com a sociedade civil organizada para entregas mais flexíveis de políticas públicas, mas que dificultam um processo de tomada de decisão menos tortuoso; a excessiva rigidez da “estabilidade” vis a vis a precariedade dos terceirizados no setor público; entre outros sintomas que, apesar de juridicamente válidos, são totalmente irracionais do ponto de vista da decisão administrativa.

Uma agenda mais incremental de reforma precisa compreender que os fatores que influenciam a captura burocrática no nível federal, cujos sintomas se manifestam, por exemplo, na sobrevalorização de carreiras jurídicas e de controle, tendem a ser diferentes dos níveis subnacionais. Particularmente no nível municipal, a política tende a capturar a burocracia ainda incipiente em várias áreas de políticas públicas, influenciando negativamente seu desempenho e aumentando os níveis de corrupção.

Uma reforma incremental, voltada para resultados, precisa evitar o vício do legalismo cujos sintomas se manifestam desde as primeiras etapas de elaboração de um novo texto normativo que, ao invés de se basear em dados e evidências para solucionar um problema de interesse público, é capturado pelo senso comum (na melhor das hipóteses) ou por grupos de interesse.

É preciso evitar que esta nova norma rapidamente se transforme num número infinito de portarias e instruções normativas dando vida a um arsenal infralegal cheio de contradições, incoerências, lacunas e sobreposições que dificultam a racionalização administrativa pelo gestor.

Uma reforma administrativa precisa ter clareza sobre o(s) aspecto(s) da racionalidade administrativa que busca resgatar. Antes de avançar na direção de uma reforma mais abrangente, é urgente a simplificação e a racionalização do estoque legal existente, lembrando que quando a prática administrativa se torna predominantemente legalista e procedimental, interesses organizados também recorrem às mesmas táticas para direcionar a decisão administrativa para os próprios fins.

As reformas precisam preservar o centro da burocracia como mais um mecanismo de peso e contrapeso essencial em democracias consolidadas, junto com o aprimoramento dos mecanismos que promovam uma gestão pública mais flexível e voltada para os resultados. Sem este centro gravitacional burocrático, sustentado na autoridade racional-legal, o Estado, a sociedade e a democracia brasileira serão piores do que são hoje, por mais inimaginável que este cenário possa nos aparecer.


[1] Editorial Estadão: Liberdade para a gestão pública. 21/11/2024

[2] Escrevi sobre isto em https://valor.globo.com/opiniao/coluna/burocracia-irracional-legal.ghtml