Política pública e sua respectiva análise é uma área específica do conhecimento humano. O seu estudo surge na década de 1930, nos Estados Unidos. O pressuposto analítico que regeu a constituição e a consolidação dos estudos sobre políticas públicas é o de que, em democracias estáveis, aquilo que o governo faz ou deixa de fazer é passível de ser (a) formulado cientificamente e (b) analisado por pesquisadores independentes[1].
Dentro do direito tributário, porém, usa-se o termo política pública associada a tributação sem qualquer apego à sua conceituação como área do conhecimento. Só para ficar num exemplo, no livro O Tributo e as Políticas Públicas[2], não obstante o mérito do autor no que se refere à pesquisa da extrafiscalidade das normas tributárias, não há uma linha sequer que conceitue políticas públicas enquanto campo do conhecimento, o que não se espera de um livro com esse título.
Conheça o JOTA PRO Tributos, a plataforma de monitoramento para empresas e escritórios, que traz decisões e movimentações do Carf, STJ e STF
O STF já disse que o benefício fiscal Reintegra seria uma “política pública” e já vimos correlação entre o tratamento do crédito da fazenda pública na recuperação judicial como uma política pública.
Os autores em matéria tributária, quando correlacionam política pública com o sistema tributário, normalmente o fazem como a mera utilização da técnica da extrafiscalidade ou concessão de incentivos fiscais, situações em que o Estado passa a influir na escolha dos cidadãos por meio dos tributos.
A confusão é também provocada por uma questão semântica. Na língua inglesa existem duas palavras diferentes que demonstram aplicabilidade distintas: politics e policy. Mas, no português brasileiro, ambos os termos em inglês são traduzidos como “política”.
Politics é entendida como “atividade humana ligada a obtenção e manutenção dos recursos necessários para o exercício do poder sobre o homem”[3], ou seja, é aquela que nos referimos quando pensamos em política partidária ou eleitoral.
Já policy é o que estamos acostumados a utilizar como sinônimo de regras, orientações para decisão, como por exemplo “a política de qualidade da nossa empresa” ou “nossa política de recursos humanos”. Portanto, public policy está mais vinculado à ideia de programa de ação governamental. Esse inclusive é o sentido ao qual o artigo 37 da Constituição Federal passou a prever após a EC 119/2021.
Quanto ao conceito jurídico de política pública, a professora Maria Paula Dallari Bucci tem se dedicado a lançar as bases para essa compreensão. Para a autora, ressai a ideia de política pública como programa de ação governamental que se relaciona com a ideia de atividade. Um único ato isolado não seria uma política pública, mas uma partícula do programa de ação governamental, elemento desta:
“Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados”.[4]
Olhar as políticas públicas como programa, isto é, como conjunto de ações, e não apenas um ato isolado, permite novos fluxos de influência na análise de políticas públicas como campo do conhecimento.
A abordagem simplista de que política pública é tudo “o que o governo escolhe fazer ou não fazer[5]” por exemplo, traz a noção de que a simples instalação de um poste de luz seria uma política pública, quando na verdade deve ser uma fração de um programa de ação governamental e não a política pública em si (no exemplo sobre a instalação do poste de luz pode ser o combate à criminalidade ou o lazer noturno da população).
Quando se pensa em utilização do sistema tributário como instrumento à disposição do governante para a implementação de determinadas políticas públicas, o primeiro aspecto que vem à mente é a técnica da extrafiscalidade.
Eis a indagação: a extrafiscalidade, a progressividade e outras técnicas fiscais são políticas públicas tributárias por si só, como tanto se diz por aí? Entendo que não.
Não se nega que a função extrafiscal dos tributos pode ser eventualmente empregada como coadjuvante em determinadas políticas públicas. Ou mesmo que determinados objetivos podem ser encorpados por desonerações fiscais.
Cito como exemplo a Lei Rouanet, que permite a dedução no imposto de renda dos gastos tidos com projetos da cultura nacional; o mesmo com a lei de incentivo ao esporte entre outros exemplos
Vamos nos ater aqui ao conceito de política pública sempre como ideia de um programa maior. Por essa razão, de acordo com os parâmetros acima, pode-se ensaiar uma definição de políticas públicas tributárias como sendo a aplicação das técnicas de tributação como suporte à um programa de ação governamental que visa atender à fins previamente definidos e correlacionados logicamente, observando-se as limitações constitucionais ao poder de tributar.
Daí porque quando diante de uma “política pública tributária” cujo governante tenha indicado que os efeitos oriundos de dita tributação serve à tal finalidade, deve-se perguntar: estamos diante uma parte de um programa governamental mais amplo (política pública tributária, ideia de programa governamental), ou apenas a aplicação de umas das técnicas de incidência tributária (política tributária, ideia de regras).
A sistematização de um conceito de políticas públicas tributárias permitirá à sociedade compreender se determinada incidência tributária é simplesmente a adoção de uma das técnicas de incidência tributária ou uma efetiva política pública tributária.
Sendo a segunda hipótese, tecer a análise do fenômeno tributário sob tal prisma poderá trazer novos fluxos de influência, tão necessários ao avanço do conhecimento jurídico, podendo inclusive ser útil para resolver vários dogmas da nossa sociedade, como o controle judicial de políticas públicas.
[1] SOUZA, Celina. “Políticas Públicas no Brasil”. Orgs. HOCHMAN, Gilberto Hochman, ARRETCHE, Marta, MARQUES, Eduardo. Editora Fio Cruz. Ed. 2007. P. 67
[2] CHAGAS, de Maurício Saraiva de Abreu. O Tributo e as Políticas públicas. Belo Horizonte. Ed. D’Plácido. 2015
[3] SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: Conceitos, esquemas de análise, casos práticos. 1ª ed. São Paulo: Editora Cengage Learning, 2010. p. 2. (2010, p. 1)
[4] BUCCI, Maria Paula Dallari (Org. O conceito de política pública em direito, in Políticas Públicas: Reflexões sobre o Conceito Jurídico, Saraiva, 2006. P. 39
[5] Dye apud SOUZA, Celina. Op. Cit. P. 68