A PEC 45 aproxima o Brasil das boas práticas internacionais de tributação do consumo ao substituir o sistema atual por três tributos: IBS e CBS, incidentes sobre o valor adicionado, com base ampla, poucas alíquotas e não-cumulatividade plena, o que faz com sejam neutros; e imposto seletivo, para desestimular o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Enquanto IBS e CBS têm função arrecadatória e incidem da forma mais uniforme possível sobre todas as operações, o imposto seletivo tem finalidade extrafiscal, conferindo tratamento discriminado a alguns bens e serviços.
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São tributos complementares, devendo ser cautelosamente desenhados para assegurar a neutralidade, um dos pilares da reforma tributária. Isso implica assegurar que a tributação não distorça a alocação de recursos e que promova a competitividade das empresas brasileiras. Deve-se evitar que a tributação exerça influência sobre a forma como as empresas organizam suas atividades, o que muitas vezes ocorre quando elas recorrem a estruturas menos eficientes e produtivas apenas para tirar vantagem de alguma regra tributária mais favorável.
A busca pela neutralidade na incidência do imposto seletivo é o foco deste artigo, e tem gerado a seguinte controvérsia: é apropriado que esse imposto seja computado na base de cálculo do IBS e da CBS, como prevê a PEC 45?
Na versão aprovada pela Câmara dos Deputados, previu-se que o imposto seletivo integrará as bases de cálculo de ICMS, ISS, IBS e CBS, tendo sido esse ponto objeto de recomendação de melhoria pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, que sugeriu a exclusão do imposto da base de cálculo de outros tributos, “em nome da simplicidade e da transparência”[1]. A recomendação, contudo, não foi acatada pelo senador Eduardo Braga, que, no substitutivo de 25/10, caminhou bem ao prever que o imposto seletivo não integrará sua própria base de cálculo, mas será computado no cálculo dos tributos acima mencionados.
O posicionamento da Câmara dos Deputados e do senador Eduardo Braga está em linha com a experiência internacional, como demonstram dados da OCDE[2]. É também suportada pela literatura, conforme Sijbren Cnossen[3]: “para garantir a neutralidade fiscal, os produtos sujeitos à tributação especial, produzidos ou importados, devem ser incluídos na base de cálculo dos tributos gerais sobre o consumo”[4].
Afinal, por que a exclusão do imposto seletivo da base de cálculo do IVA (e dos impostos que serão extintos após a transição) anularia a neutralidade da tributação? É o que demonstraremos adiante, a partir de exemplo da professora Melina Rocha[5] e assumindo a incidência do imposto “uma única vez sobre o bem ou serviço”[6], na primeira etapa da cadeia.
Comecemos com um primeiro cenário, em que o imposto seletivo integra as bases de cálculo do IBS/CBS. Nesse contexto, uma indústria produz e vende o bem a um varejista, por $100, com seletivo de 10% e IBS/CBS de 25%:
Preço
$100,00
+ Seletivo 10%
$10,00
+ IBS/CBS 25%
$27,50
= Valor da NF
$137,50
Para o varejista, o seletivo é um tributo não recuperável (pois cumulativo), integrando o custo da mercadoria adquirida, de modo que a operação é assim contabilizada, nos termos do CPC 16 (R1):
Débito
Estoques (custo)
$110
Débito
IBS/CBS a recuperar
$27,50
Crédito
Fornecedores
$137,50
Na segunda etapa da cadeia, suponhamos que o varejista esteja realizando uma “queima de estoque”, vendendo a mercadoria a preço de custo, ou seja, sem valor agregado, por $110. Como nessa etapa incidem somente IBS e CBS, sem seletivo, a nota fiscal totaliza $137,50 e o varejista não recolhe IBS e CBS, pois aproveita o crédito da etapa anterior, no mesmo valor de $27,50:
Preço
$110
+ IBS/CBS 25%
$27,50
= Valor da NF
$137,50
O imposto seletivo fica neutro, pois IBS e CBS recolhidos sobre o seu valor na primeira etapa são aproveitados como crédito na segunda. Para o consumidor final é indiferente comprar do varejista ou diretamente da indústria.
Em um segundo cenário, ocorrem as mesmas operações do primeiro cenário, mas o imposto seletivo não compõe as bases de cálculo de IBS/CBS, de modo que a nota fiscal de venda da indústria para o varejista tem valor inferior:
Preço
$100,00
+ Seletivo 10%
$10,00
+ IBS/CBS 25%
$25,00
= Valor da NF
$135,00
Para o varejista, o imposto seletivo de $10 continua sendo parte do custo da mercadoria adquirida, que totaliza $110, gerando os mesmos lançamentos contábeis do primeiro cenário.
Já na segunda etapa, o varejista novamente revende a mercadoria pelo valor de custo ($110). Nessa etapa surge uma distorção, pois o imposto seletivo, embora não tenha integrado a base de cálculo de IBS/CBS da indústria, integra o cálculo desses tributos, agora devidos pelo varejista.
Como a mercadoria foi vendida a custo, sem valor agregado, não deveria haver IBS e CBS a recolher nessa etapa, mas, graças à referida distorção, acaba sendo apurado valor a ser recolhido:
Preço
$110,00
+ IBS/CBS 25%
$27,50
= Valor da NF
$137,50
– Crédito de IBS/CBS
-$25,00
= IBS/CBS a pagar
$2,50
Nesse segundo cenário, portanto, o imposto seletivo não é neutro, ou seja, pode impactar a organização das atividades empresariais, pois, para o consumidor final, é mais vantajoso comprar diretamente da indústria ($135) do que do varejista ($137,50), a despeito de o comerciante ter realizado a venda a preço de custo, sem nenhuma agregação de valor.
Ou seja, embora não haja impacto sobre o valor total do varejista, sempre de $137,50, quando o imposto seletivo deixa de ser computado nas bases de cálculo do IBS e da CBS, a indústria fica em posição mais vantajosa exclusivamente em virtude da regra tributária, pois consegue vender ao consumidor final pelo valor total de $135,00.
Vale ressaltar que o exemplo hipotético de revenda a preço de custo foi idealizado com a finalidade de deixar ainda mais evidente a distorção causada pela não inclusão do seletivo na base de cálculo do IBS/CBS, representada pela apuração de valores a serem pagos mesmo num cenário sem valor agregado. Realizamos outras simulações numéricas e confirmamos que a distorção ocorre também quando se adiciona margem de lucro à operação realizada pelo varejista.
O que esse exemplo nos mostra? Que, se alterado o texto da PEC 45 para excluir o seletivo da base de ICMS, ISS, IBS e CBS, a legislação tributária induzirá as empresas a se organizarem de forma a realizar vendas diretamente da indústria ao consumidor final. Aos que argumentarem que isso não é plausível, ou seja, que seria raro adquirir produtos diretamente da indústria, vale relembrar a máxima da teoria econômica: pessoas reagem a incentivos.
E qual o problema disso? Como dissemos, a regra poderá induzir a uma determinada organização da atividade empresarial exclusivamente em razão do incentivo criado pelo texto, artificial, e não pela busca de eficiência econômica. Quando o Estado, representado aqui pela má qualidade de uma norma tributária, interfere na forma como a atividade econômica se organiza, normalmente resulta em menos produção, crescimento e renda para o país.
Por isso, a inclusão do imposto seletivo na base de cálculo do IBS e da CBS representa verdadeira medida de neutralidade tributária, própria dos sistemas em que esses tributos coexistem. Não se confunde com a incidência do imposto seletivo sobre ele mesmo, que não pode ser admitida, por prejudicar a transparência que se espera da tributação do consumo após a reforma tributária.
Assim, ao nosso ver, o relatório do Senador Eduardo Braga acertou ao prever que o seletivo “não integrará sua própria base de cálculo” (inciso IV) e “integrará a base de cálculo dos tributos previstos nos arts. 155, II, 156, III, 156-A e 195, V” (inciso V do §6º do art. 153, da Constituição).
[1] Relatório disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/ac2f89ec-b924-426d-97b1-b9f6d4a76595.
[2] OECD (2022), Consumption Tax Trends 2022, https://doi.org/10.1787/6525a942-en.
[3] Referência no tema desde 1977, quando publicou sua obra Excise Systems: A Global Study of the Selective Taxation of Goods and Services.
[4] Cnossen, S. (2005, p. 7). Theory and Practice of Excise Taxation.
[5] Postado em seu perfil pessoal, no Linkedin.
[6] Art. 153, §6º, III, do substitutivo de 25/10.