As operações policiais, como as realizadas pelo governo estadual do Rio de Janeiro nos complexos do Alemão e da Penha, não podem continuar a ser chamadas de guerra. Por quê? Porque a palavra “guerra” implica a existência de um inimigo. Quando há um inimigo, há também uma autorização implícita para matar, algo próprio do uso das Forças Armadas em conflitos externos.
Portanto, quando utilizamos o termo “guerra” internamente, o que estamos, na prática, dizendo é que o Estado tem autorização para matar dentro do próprio território.
É por isso que o recente anúncio dos ministros Lewandowski e Castro sobre a criação de um escritório emergencial de combate ao crime organizado precisa ser visto com muita cautela. No passado, o uso das Forças Armadas em operações de “pacificação” também foi justificado como uma resposta à “ameaça interna” representada pelos traficantes. Mas as Forças Armadas são treinadas para eliminar um inimigo externo — e não para agir como polícia.
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Quando o Estado utiliza as Forças Armadas para “restabelecer a ordem” em comunidades pobres, o que se estabelece é, na verdade, uma violência estatal interna. Nesse processo, as Forças Armadas acabam exercendo poder policial — o que é inconstitucional — e o inimigo interno passa a ser o pobre, aquele que nasce e morre sem garantias de direitos.
A Constituição permite que as Forças Armadas atuem para garantir a lei e a ordem, mas em nome dessa “ordem”, o que tem acontecido é a violação da Constituição, direitos humanos “negociados” e a instauração de autoritarismo sem ditadura. Além disso, mesmo que fosse uma guerra, toda guerra ou conflito armado tem limites. O Direito Internacional Humanitário estabelece regras claras: proteção de civis, de feridos, de escolas e hospitais.
Os Princípios da ONU sobre a Prevenção e Investigação Eficaz de Execuções Extralegais, Arbitrárias ou Sumárias são claros ao estabelecer que nenhuma circunstância excepcional, inclusive estado de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outro tipo de emergência pública não podem ser invocados como justificativa de execuções extrajudiciais. Não devem ocorrer em nenhuma circunstância, nem sequer em situações de conflito armado interno, abuso, uso ilegal ou excessivo de força por parte de funcionário público.
Quando meus alunos me perguntam se esse é um caso para a Comissão Interamericana, eu disse: não só é, como já foi.
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Em 2017, o Brasil foi condenado exatamente por chacinas no Complexo do Alemão, conhecidas como o Caso Favela Nova Brasília. Nessas incursões, ocorridas em 1994 e 1995, 26 pessoas foram executadas extrajudicialmente, e três mulheres, entre elas duas adolescentes, foram vítimas de violência sexual e tortura por parte de policiais.
Na época, o Estado alegou que houve confronto armado. A Corte, no entanto, concluiu que se tratou de execuções extrajudiciais. E o que significa isso? Significa que agentes do Estado tiraram a vida de pessoas de forma arbitrária, sem devido processo legal, sem contraditório e sem ampla defesa, caracterizando uma grave violação de direitos humanos.
A Corte também responsabilizou o Brasil por falhas e omissões nas investigações, não apenas da polícia; mas também do Ministério Público, que deveria exercer o controle externo da atividade policial, e do Poder Judiciário, que aceitou o arquivamento dos casos. Essas omissões foram decisivas para a impunidade.
A sentença foi clara: as vítimas fatais da violência policial no Brasil são, em sua maioria, jovens, negros, pobres e desarmados.
Muitas mortes são registradas como “legítima defesa”, mas as autópsias mostram disparos em regiões vitais, o que revela uma política de atirar para matar, e não para se defender. Por isso, a Corte determinou que o Brasil regulamente o uso legítimo da força de acordo com os princípios básicos das Nações Unidas. Abro um parêntese na sentença para lembrar que os policiais também sofrem e são vítimas de um sistema que os coloca sob enorme pressão. Recebem baixos salários, enfrentam jornadas exaustivas e atuam em condições que frequentemente violam direitos humanos. Não por acaso, a polícia é hoje uma das categorias com maior índice de suicídios no país. Eles também precisam de cuidado e amparo.
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Continuando a sentença do caso Favela Nova Brasília, a Corte determinou que a prática de registrar as mortes como “auto de resistência” distorce a verdade e afeta diretamente as investigações, contribuindo para a impunidade.
A Corte também destacou a estigmatização das vítimas: antes mesmo de investigar, a polícia já parte da premissa de que a vítima era criminosa e, com isso, se encerra a investigação por considerar que era um possível criminoso.
Por isso, determinou que o Estado brasileiro deve treinar suas forças de segurança para superar o estigma de que “todo pobre é criminoso”.
Outro ponto gravíssimo é a violência contra mulheres nas comunidades: elas são ameaçadas, feridas, insultadas e, muitas vezes, vítimas de violência sexual durante as operações. E, para agravar, a Corte mencionou que os órgãos periciais, como o IML e os institutos de criminalística, são subordinados à polícia civil, o que compromete a imparcialidade das investigações.
A Corte foi clara que a responsabilidade não é só da polícia.
O Ministério Público falhou em seu dever de fiscalização, e o Judiciário também, ao concordar com arquivamentos sem questionar a falta de diligência.
A Corte foi explícita: o Brasil precisa garantir independência e imparcialidade nas investigações de violações de direitos humanos.
Mais recentemente, em 2023, o Brasil foi novamente condenado pela Corte Interamericana no caso Operação Castelinho, também por execuções extrajudiciais perpetradas por policiais militares em Sorocaba, no ano de 2002.
Nesse julgamento, a Corte reiterou que, em casos de violência estatal, a própria polícia não pode investigar a si mesma, mas sim de um órgão independente ou o Ministério Público deve assumir essa função.
Além de reforçar o direito das vítimas e de seus familiares à verdade: o direito de conhecer o que realmente aconteceu.
A Corte também determinou que a Polícia e a Polícia Militar de São Paulo devem assegurar a plena implementação de dispositivos de geolocalização de movimentos, o que, sem dúvida, é uma medida preventiva contra execuções extrajudiciais.
No âmbito interno, o Supremo Tribunal Federal também já enfrentou esse tema. A ADPF 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, estabeleceu um verdadeiro plano de redução da letalidade policial no Estado do Rio de Janeiro.
O STF determinou uma série de medidas para que o Estado do Rio de Janeiro elaborasse um plano de recuperação territorial que tivesse medidas de controle: a instalação de câmeras corporais, a preservação de locais de crime, a intervenção do MP RJ, o comparecimento de promotor no local dos fatos, a remessa imediata de relatórios ao MP, e até a obrigatoriedade da presença de ambulâncias em ações com risco de confronto.
Mas o que vimos na operação de ontem? A repetição das mesmas violações. A justificativa de que não há imagens porque a bateria acabou, o abandono de corpos na mata e a remoção dos corpos pelos próprios familiares (revitalizando-os), a execução de civis relatadas pelos familiares, o impedimento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro de acompanhar a perícia do IML, além inúmeras violações que ainda nem puderam ser processadas…
Mesmo após determinações claras tanto do STF quanto da Corte Interamericana de fatos de 30 anos atrás, o que persiste é a ausência de controle, a falta de transparência e a naturalização de práticas que configuram graves violações de direitos humanos.