Por que a lente do direito digital é indispensável para o jurista moderno?

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A digitalização de nossas vidas transformou radicalmente nossas relações, do contrato de trabalho à paquera virtual. Essa nova camada digital, onde a própria arquitetura tecnológica não apenas facilita, mas também molda nossos comportamentos, nos força a confrontar uma questão crucial: o que é, afinal, o direito digital?

A complexidade reside justamente nessa imersão profunda da tecnologia em todos os aspectos da sociedade, tornando sua definição um desafio inegável.

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Propomos que o direito digital seja compreendido como o campo jurídico que se dedica à regulação e interpretação das relações sociais e jurídicas emergentes ou transformadas pela tecnologia digital, abordando-as a partir de duas dimensões fundamentais.

A primeira dimensão, inspirada no trabalho[1] de BJ Ard e Rebecca Crootof, nos confronta com a incerteza jurídica intrínseca às novas tecnologias. Isso vai além da mera ausência de leis específicas; refere-se a uma incerteza mais profunda, gerada pela novidade e pela complexidade tecnológica, que desafia categorias jurídicas pré-existentes e levanta questões sobre o que exatamente precisa ser protegido. Para esses autores, é fundamental compreender o tipo de incerteza – se é sobre os fatos, sobre a aplicação da lei, ou sobre os próprios valores em jogo.

A partir dessa compreensão, podemos definir a abordagem necessária, que pode variar desde a criação de novas regulações até a adaptação de princípios jurídicos já existentes. O objetivo final é construir uma resposta jurídica eficaz e flexível, capaz de lidar com a rápida evolução tecnológica, garantindo que direitos e valores fundamentais sejam preservados em um ambiente digital em constante transformação.

A segunda dimensão, a partir da obra[2] de Roger Brownsword, é particularmente provocadora. Ele explora o technological fix: a ideia de que problemas sociais, morais ou jurídicos podem ser resolvidos por meio de soluções tecnológicas. Quando as normas jurídicas são incorporadas diretamente na arquitetura de um sistema — como um software que impede o acesso a determinado conteúdo ou um algoritmo que prioriza certas informações —, a tecnologia não apenas facilita, mas efetivamente regula o comportamento humano.

O risco inerente a essa abordagem é a delegação de decisões normativas a sistemas opacos e inflexíveis, retirando a agência humana e o espaço para a deliberação ética e jurídica. Ao confiar cegamente na tecnologia como uma solução para nossos problemas, podemos inadvertidamente criar novas formas de controle, preconceitos algorítmicos e desafios à autonomia individual.

Para tangibilizar essas dimensões e convencer sobre a urgência de estudar o direito digital, pensemos em exemplos que permeiam nosso cotidiano. Na primeira dimensão, a das incertezas geradas pela tecnologia, considere o emblemático caso do Studio Ghibli e da OpenAI.

Se uma inteligência artificial aprender e replicar o estilo artístico único do Studio Ghibli, levantando questões sobre a originalidade e a proteção de obras criadas por IA, o direito autoral protege o estilo artístico? Qual a importância de compreender como a IA aprendeu o estilo para determinar se houve infração ou mera inspiração?

Essa situação nos força a questionar o que realmente devemos proteger na sociedade diante da capacidade criativa das máquinas. A própria novidade e a ausência de precedentes jurídicos claros criam um vasto campo de incerteza que exige uma abordagem especializada.

Na segunda dimensão, a das arquiteturas que regulam, pensemos nas plataformas de redes sociais e o controle de conteúdo. Não são apenas as políticas de uso que regulam o que pode ser postado; os algoritmos dessas plataformas decidem o que vemos, quem nos vê, e até mesmo moldam debates sociais.

A tecnologia, por sua arquitetura de recomendação e moderação, impõe regras de conduta e define o que é aceitável, levantando questões cruciais sobre liberdade de expressão, desinformação e responsabilidade das plataformas, bem como o devido processo para remoção de conteúdo.

Mesmo que a tecnologia impacte transversalmente diversas áreas do direito – do civil ao penal, do administrativo ao constitucional –, há problemas recorrentes que ganham características próprias e justificam o estudo do direito digital como uma área específica.

Constantemente, nos deparamos com argumentos que tentam adiar ou negar a necessidade de uma intervenção jurídica robusta nesse campo: “a tecnologia é muito nova e devemos esperar para regular”, “não vamos intervir sobre uma tecnologia porque ainda não entendemos como ela funciona”, “a tecnologia é nova e não foi objeto de regulação jurídica específica”, “não podemos fazer o direito criar obstáculos tecnológicos”, “a regulação pode sufocar a inovação” ou, ainda, “o mercado se autorregula”.

Contrariando superficialidade dessas afirmações, o estudo do direito digital se mostra importante para compreender a tecnologia não apenas como ferramenta, mas como um poderoso agente regulador do comportamento humano. Se a tecnologia já impõe regras e molda nossas interações, ignorá-la é permitir que interesses privados e lógicas algorítmicas definam o futuro das relações sociais e jurídicas sem o devido escrutínio.

Os aprendizados obtidos no estudo do direito digital transcendem as áreas tradicionais, beneficiando profissionais de todos os ramos. Ao compreender a lógica por trás dos sistemas digitais, o jurista pode não apenas aplicar a lei existente, mas também influenciar a criação de novas normativas mais adequadas à realidade tecnológica, garantindo que a inovação ocorra de forma ética, justa e alinhada aos valores democráticos. Não podemos esperar que os problemas se tornem irreversíveis para então agir. A hora de estudar e moldar o direito digital é agora.

Esse é um convite para que todos os profissionais do direito se debrucem sobre essa nova área. O direito digital não é apenas um nicho; é uma nova lente para compreender a camada digital sob a sociedade. É uma ferramenta indispensável para qualificar a atuação de profissionais em sua área de atuação, permitindo que o jurista não apenas reaja aos desafios tecnológicos, mas os antecipe e contribua ativamente para a construção de um futuro digital mais justo e equitativo. Em um mundo cada vez mais digitalizado, o domínio do direito digital não é um diferencial, mas uma necessidade inadiável.


[1]CROOTOF, Rebecca; ARD, B. J. Structuring Techlaw. Harvard Journal of Law & Technology, Cambridge, v. 34, n. 2, p. 348-417, spring 2021.

[2] BROWNSWORD, Roger. Law, Technology and Society: Reimagining the Regulatory Environment. London: Routledge, Taylor & Francis Group, 2019.