“Tudo que sabemos da guerra conhecemos por uma “voz masculina”. Somos todos prisioneiros de representações e sensações masculinas da guerra” (Aleksiévitch, 2016, p. 12)
No segundo semestre de 2023 as mulheres nas forças de segurança ganharam notoriedade no campo jurídico e midiático diante das ADIs judicializadas no Supremo Tribunal Federal (STF). O Partido dos Trabalhadores iniciou o debate no judiciário questionando a limitação de 10% do ingresso das mulheres na Polícia Militar do Distrito Federal, posteriormente a PGR ajuizou (ADIs) questionando a constitucionalidades de leis de 17 estados que limitam a participação feminina nos concursos para PM e Bombeiros[1] e 3 ADIs abordando normas que restringem a participação de mulheres nas Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica)[2].
No debate verifica-se o discurso sobre a “fisiologia feminina”, como argumentos limitadores para acesso de mulheres às presentes forças. O argumento enviado no parecer do Exército à AGU, constou “É necessário reconhecer que a fisiologia feminina, refletida na execução de tarefas específicas na zona de combate, pode comprometer o desempenho militar em operações de combate, dependendo do ambiente operacional”.
Na ADI 7482, ao questionar a limitação de ingresso das mulheres na PMRR, a Procuradoria do Estado ao se manifestar proferiu “a presença física do policial militar do gênero masculino é muito mais eficaz para a resolução de conflitos sem violência (…), tendo em vista a simples visualização pelo agressor da compleição física, resistência e força”.
Contudo, as mulheres já foram para guerra, porém tudo que conhecemos é por uma voz masculina. O trecho citado no começo do texto foi retirado do livro A guerra não tem rosto de mulher, da escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Aleksiévitch. No livro, a autora traz relatos de mulheres que lutaram na Segunda Guerra Mundial para o exército da antiga União Soviética e, assim o presente texto tem o objetivo de abordar o que é ser uma mulher militar.
Ao mesmo tempo em que as mulheres sempre estiveram presentes no contexto militar, o discurso do sexo frágil também era recordado. As mulheres na Primeira Guerra Mundial e na Guerra Civil americana exerceram um papel fundamental como enfermeiras, o que não gerou ruídos.
Contudo, quando as mulheres se candidataram para lutar nas fileiras do Exército Vermelho durante a Segunda Guerra à época gerou descréditos “certo vou estudar, mas não para enfermeira …. Queria atirar! Atirar como ele (p. 70) e, posteriormente, o silenciamento. “Não confessávamos para ninguém, que tínhamos lutado no front […] Depois de 30 anos começaram a nos homenagear […] Os homens eram vencedores, heróis, noivos, a guerra era deles; já para nós, olhavam com outros olhos. Era completamente diferente …. Vou lhe dizer, tomaram a vitória de nós (p. 156).
Os anos se passaram. Porém, a história continua a mesma e até a presente judicialização foi silenciada. Ao analisar o efetivo das mulheres nas PMs verifica-se que representam 12,12%[3] da corporação e ao analisar as atividades desenvolvidas, no campo operacional são 10% e no administrativo 21%.
Esse índice decorre da restrição em leis e/ou editais das PMs, porém, ao mesmo tempo, questiona-se a sua sub-representação nas PMs que não efetuam essa limitação (Amapá, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Espírito Santo, Paraná e Rio Grande do Sul), pois o maior efetivo de mulheres corresponde a 23% (Alagoas) e as demais variam entre 12 a 16%.
Para Ribeiro (2018), é a partir da vedação ampla e irrestrita das mulheres que ocorre a demarcação dos lugares e da relação de poder na rotina institucional. Além disso, a autora pontua que ao definirem previamente que a atividades desempenhadas estarão atreladas a condição do gênero e do sexo naturalizam as desigualdades. Pois, quando reservam exclusivamente certas atividades para as mulheres policiais reafirmam e reproduzem dentro da corporação a disparidade de gênero que existe fora dos muros policiais.
Mocinha, como vou transformar vocês em soldados, e não em alvo para os fritz? Mocinhas, mocinhas … Todos nos amavam e o tempo todo tinham pena de nós. E nós ficávamos ofendidas que tivessem pena. Por acaso não éramos soldados como todos os outros? (…) Tínhamos vindo para combater. E ele não nos via como soldados, e sim como mocinhas”
Na parte dos tiros fomos bem, inclusive melhor que os francoatiradores homens que foram chamados da linha de frente para um curso de dois dias e que se surpreenderam muito por fazermos o trabalho deles (Aleksiévitch, 2016, p. 50).
No campo histórico, o estado de São Paulo foi pioneiro em permitir o ingresso das mulheres da corporação, em 1955. Porém, com espaços e atividades devidamente limitados, pois foi criado exclusivamente o Corpo de Policiamento Especial Feminino (PM-FEM) e as atividades que foram destinadas envolviam o cuidado e assistência aos idosos, crianças e mulheres.
Os demais Estados só começam a legislar de maneira sistemática sobre as mulheres nas PMs a partir da década de 80. Majoritariamente foi criado quadros separados para as mulheres na organização militar, o que impactou significativamente à progressão na carreira. Ademais, em todas as legislações houve o estabelecimento do percentual de mulheres para ingressarem.
Na análise histórica, não se nega que tal medida teve o incentivo de fomentar a participação feminina, uma vez que o cenário é predominantemente masculino. Porém, hoje na análise realizada sobre esse percentual estipulado evidencia-se que não se constitui como ação afirmativa em fomentar a participação feminina, mas como uma discriminação com base exclusivamente ao “gênero”.
Discorre-se que a discriminação é com base no “gênero feminino” e não ao sexo, pois os argumentos utilizados, como já apontados, para a presente restrição é que a atividade da polícia militar é voltada ao policiamento ostensivo e, consequentemente, necessitaria da “força física” como elemento fundamental, característica essa sendo “pertencente ao masculino”.
No entanto, o presente texto aborda o sentido contrário, uma vez que uma das justificativas para o ingresso das mulheres nas polícias militares foi a necessidade de afastar a imagem da corporação do período da ditadura militar e que a corporação estaria se modernizando, ou seja, afastando-se aos indícios da violência e da figura “truculenta” da corporação.
De acordo com Ribeiro (2018, p.7), a concepção de polícia moderna modelou-se com o ingresso das mulheres nestas instituições com o discurso que a sensibilidade, flexibilidade e habilidade de cuidar de pessoas eram prerrogativas do feminino. Para a autora, o debate na época não foi sobre a igualdade e os direitos das mulheres, mas em como humanizar a polícia. Nesse sentido, evidencia-se uma dicotomia já que os atributos tidos como pertencentes ao “feminino”, foram ao mesmo tempo meios para o seu ingresso, como tornaram-se justificativas para a sua exclusão.
Assim, evidencia-se a necessidade e importância do debate no campo jurídico e institucional, pois é papel do Estado Democrático de Direito compreender como os indivíduos segregam uns aos outros, tendo como objetivo desconstruir práticas que reforcem papéis considerados femininos ou masculinos.
Devendo o assunto ser uma temática urgente para além do campo jurídico, mas também no campo acadêmico. Pois, como observado no presente texto, é necessário compreender o que é ser uma mulher policial/militar, visto que além das restrições em seu ingresso, as mesmas após a sua admissão encontram-se em um universo ainda predominantemente masculino.
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
RIBEIRO, Ludmila. “Polícia Militar é Lugar De Mulher?” Estudos Feministas (2018): 1-15. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9584.2018v26n143413. Acesso em: 25 de maio de 2023
[1] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=515622&ori=1.
[2] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=517380&ori=1
[3] Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMDc0ZWFjYTgtYjA1OS00YzBmLWJkNTctZmVjODM2YzlmYzBjIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9