A busca por inovação tecnológica na Administração Pública é um imperativo inegável, sobretudo em um cenário de constante evolução tecnológica. Todavia, a trajetória de desenvolvimento e implementação de soluções tecnológicas na administração pública não está isenta de desafios. A rápida evolução tecnológica impõe uma demanda constante por atualização e expertise especializada. A efetiva incorporação de novas tecnologias requer investimentos substanciais, os quais podem sobrecarregar orçamentos já ajustados. Além disso, escolhas equivocadas na seleção e implementação de sistemas podem resultar em entraves operacionais e financeiros, evidenciando a necessidade de uma abordagem mais aprimorada.
Nesse contexto, a promulgação da Lei Complementar n° 182/2021, conhecida como o Marco Legal das Startups (MLS), emerge como uma referência. Além de fomentar o empreendedorismo inovador, modernizar o ambiente de negócios e reconhecer a inovação como um impulsionador do desenvolvimento econômico e social, o Marco viabiliza a contratação ágil e eficaz de soluções tecnológicas pela administração pública. Nesse sentido, o MLS estabelece uma modalidade especial de licitação, que inova ao prever que o escopo da contratação seja definido pela descrição do problema que o Poder Público quer resolver ao invés de exigir a descrição das especificações técnicas da tecnologia que se pretende contratar.
Isso torna-se particularmente valioso, pois é difícil que o Poder Público tenha conhecimento e clareza sobre as soluções tecnológicas disponíveis, mas é factível que indique os desafios de interesse público que pretende enfrentar com o uso de tecnologia. No entanto, em razão das novidades que introduz no regime de contratação pelo Poder Público, e por não prever maiores detalhamentos em algumas questões, ainda persistem dúvidas sobre a implementação e utilização da modalidade especial de aquisição de tecnologia inovadora via MLS.
Uma das principais inovações introduzidas pelo MLS são os “contratos testes”, chamados de Contratos Públicos para Soluções Inovadoras (CPSI), que permitem à Administração Pública celebrar contratos com startups para o desenvolvimento de soluções inovadoras. Esses contratos podem incluir riscos tecnológicos e vigorar por até 12 meses, com possibilidade de prorrogação por igual período, bem como atingir o valor de, no máximo, R$1.600.000,00.
Se as soluções forem exitosas, é possível formalizar contratos de fornecimento ou de integração dessas soluções na infraestrutura tecnológica e nos processos de trabalho da Administração Pública, sem a necessidade de ser realizado um novo processo licitatório. Esse segundo contrato pode vigorar por até 24 meses, prorrogáveis por mais 24 meses, e chegar, no máximo, ao valor de R$8.000.000,00.
Apesar desses avanços notáveis, a transição dos CPSI para contratos de fornecimento ainda representa um desafio significativo. O MLS não fornece orientações detalhadas sobre os procedimentos de transição do contrato teste para o contrato de fornecimento e as cláusulas contratuais específicas que devem constar nesse último instrumento. Contudo, essas lacunas não devem impedir a adoção do MLS, pois existem alternativas seguras e coerentes com a natureza inovadora dos contratos de fornecimento que podem ser implementadas.
O artigo 15 do Marco Legal das Startups prevê que a formalização do contrato de fornecimento da solução tecnológica, com a mesma contratada que celebrou o contrato teste, deve ser realizada sem licitação. Nesse sentido, o texto não esclarece se a celebração de contrato sem licitação se enquadra como dispensa ou inexigibilidade, e nem traz maiores detalhamentos sobre quais documentos devem ser produzidos pela Administração Pública para esclarecer e justificar a contratação.
Entendemos que a singularidade e as características técnicas exclusivas da solução inviabilizam qualquer possibilidade de competição entre fornecedores. Por isso, a nosso ver, trata-se de uma contratação por inexigibilidade, conforme disposto no artigo 74, caput, da Lei 14.133/21 (ou artigo 25, caput, da Lei 8.666/93).
Assim, nos casos de inexigibilidade, em que a contratação é feita de forma direta, o processo deve ser instruído nos termos previstos no artigo 72 da Lei 14.133/21. Este amparo legal do processo de contratação é uma alternativa ágil e eficiente para adquirir essas soluções e que garante, paralelamente, a conformidade com os princípios da Administração Pública, como a legalidade e a transparência. Essa abordagem padronizada economiza tempo e permite que os gestores se concentrem nas etapas específicas da contratação, em vez de criar um novo conjunto de regras e procedimentos, o que resulta em uma maior eficiência operacional.
No que se refere à falta de detalhamento de cláusulas contratuais, também consideramos que a Lei 14.133/21 pode ser utilizada como referência para preencher essa lacuna, considerando que seu artigo 92 estabelece uma série de cláusulas obrigatórias para os contratos administrativos. Dentre os diversos aspectos a serem pactuados no contrato, insta salientar a importância do preço e dos critérios no âmbito do contrato de fornecimento, especialmente considerando o contexto de inexigibilidade de licitação.
É de suma importância que o valor do contrato esteja em conformidade e respeite os parâmetros legais e orçamentários, sem comprometer o equilíbrio financeiro do órgão envolvido na contratação, bem como que os critérios sejam bem estabelecidos e objetivos, a fim de afastar questionamentos. Nesse sentido, recomendamos a observância de alguns critérios como o próprio limite estabelecido pelo MLS, bem como a compatibilização com os preços de mercado para produtos ou soluções similares. Além disso, é crucial ter como referência o valor proposto na licitação que serviu como base para a formalização do CPSI, bem como garantir que o valor fixado esteja em sintonia com o objeto contratado, sua qualidade, quantidade e características.
Nas hipóteses de contratação que envolva licenças de uso de software, inclusive, vale observar que o Tribunal de Contas da União (TCU) possui entendimento de que o Poder Público pode se limitar a efetuar o pagamento apenas das licenças efetivamente ativadas. Em sua decisão,[1] o TCU entendeu pela vedação do pagamento à vista por licenças de software ainda não ativadas, uma vez que o momento da entrega definitiva nesse tipo de aquisição é o da ativação da licença.
Outro ponto a ser destacado nos contratos é a propriedade intelectual. Nesse caso, o MLS prevê que já no contrato teste deve constar cláusula que defina a “titularidade dos direitos de propriedade intelectual das criações resultantes do CPSI” (art. 14, IV). Consequentemente, é essencial que o contrato de fornecimento também possua cláusula específica sobre a propriedade intelectual das tecnologias utilizadas no âmbito do contrato e que essas cláusulas sejam compatíveis com o que consta no contrato teste. Assim, é necessário definir de forma clara quais os direitos da administração pública e do contratado sobre as soluções inovadoras desenvolvidas, bem como sobre os materiais e análises gerados pela aplicação dessas soluções.
A superação desses desafios, por meio da harmonização entre as previsões legais e a prática, é crucial para impulsionar a inovação na Administração Pública. Essa harmonização proporciona uma maior segurança jurídica para todas as partes envolvidas, ao mesmo tempo em que fomenta um ambiente propício ao empreendedorismo inovador. Além disso, permite a eficiente aplicação de soluções inovadoras que atendam às necessidades prementes da Administração Pública e, em última instância, da sociedade.
[1] Acórdão 2569/2018-Plenário do TCU:
“É vedado o pagamento à vista por licenças de software ainda não ativadas, uma vez que o momento da entrega definitiva nesse tipo de aquisição é o da ativação da licença. Normas de direito financeiro afetas à Administração Pública (arts. 62 e 63 da Lei 4.320/1964) impõem que a liquidação das despesas seja realizada por ocasião da entrega definitiva do bem ou da realização do serviço”.