Poder Judiciário, fake news e liberdade de expressão

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A modernidade, ao pretender superar a construção teológica de toda a realidade, prevalente na Idade Média, substitui a ideia de verdade objetiva pela liberdade subjetiva da construção de uma verdade consensual e coletiva[1] que, mediante um processo de discussão e debate, desemboca numa sociedade liberal e aberta[2], com espaços de confrontação competitiva e interação crítica de ideias, concepções e opiniões.

Com a internet e, em especial, com a eclosão das redes sociais, esse debate democrático é feito hoje por um sistema de comunicação que é irredutível à soma das meras partes, ou seja, dos discursos individuais de cada cidadão. Um sistema que consiste, antes, num espaço público de discussão conformado, condicionado, filtrado, seja por meio de intensas atividades de moderação, seja pelos algoritmos das grandes plataformas digitais[3].

Se antes, manifestar uma ideia ou pensamento era raro e difícil, e os emissores de opinião se contavam em número reduzido, hoje, diante da oferta quase incomensurável de conteúdos, a escassez está na atenção dos ouvintes, no tempo disponível para ouvir[4]. A internet, com sua arquitetura end-to-end, em que todos falam com todos e para todos, permitiu a democratização radical da participação de cada usuário no debate político.

Nesse contexto de liberdade, excessos expressivos e notícias falsas podem acontecer e acontecem. Para remediar o problema, fruto da nova realidade, há dois caminhos: (i) assumir suficientes os mecanismos jurídicos já existentes, como o regime de responsabilidade do Marco Civil da Internet, os crimes de calúnia, injúria e difamação, a indenização civil por danos morais e materiais, entre outros; ou (ii) assumir que o direito atual é insuficiente em lidar perfeitamente com a nova realidade, e, a partir daí, adotar novos instrumentos legislativos ou regulatórios que facilitem o combate aos efeitos perniciosos das novas tecnologias, sem impactar os alicerces da liberdade de expressão.

Na ausência de uma resposta do Legislativo, embora a ausência seja também ela uma resposta, o Poder Judiciário tem atuado de maneira incisiva. Temos, por exemplo, o Inquérito (INQ) 4781, popularmente conhecido como Inquérito das Fake News, “instaurado com o objetivo de investigar a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas e ameaças contra a Corte, seus ministros e familiares”. Tal inquérito foi objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 572, cujo julgamento declarou sua legalidade e constitucionalidade. Salienta-se o voto do ministro Marco Aurélio, único a divergir, que considerou haver violação do sistema penal acusatório e que as manifestações críticas estariam protegidas pela liberdade de expressão e pensamento[5].

No âmbito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), destaca-se a Resolução 23.714/2022, direcionada ao combate à desinformação durante as eleições, foi construída para “proibir a divulgação ou compartilhamento de informações falsas ou gravemente descontextualizadas que pudessem comprometer o processo eleitoral”, tendo o STF, no final do ano de 2023, confirmado a validade da referida norma do TSE, mantendo os poderes para a imediata retirada de conteúdo inverídico ou fora de contexto das plataformas digitais. Cita-se também, no âmbito do TSE, o Recurso Ordinário Eleitoral 0603975-98, que cassou o mandato do deputado Fernando Francischini, em razão de transmissão ao vivo em rede social, no dia do pleito, de fatos “notoriamente inverídicos” sobre o sistema eletrônico de votação[6].

Mais recentemente, o TSE anunciou que, juntamente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, está constituindo grupo para a aprimorar o rastreamento daqueles que “atentam contra a democracia e a livre vontade dos eleitores”[7]. Tal iniciativa foi duramente criticada em editorial da Folha de S.Paulo pelo risco de censura e voluntarismo, e que o tribunal deveria se pautar pela autocontenção e pela atenção ao valor fundamental da liberdade de expressão[8].

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, em caso de um vídeo com informação falsa, no qual um homem afirmou ter comprado um salgado repleto de larvas em uma padaria de Santa Catarina, determinou que a rede social não seria obrigada a fornecer dados de todos os usuários que compartilharam falso conteúdo, já que, “sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, deve prevalecer a privacidade dos usuários”. Para o STJ, não se pode “subjugar o direito à privacidade a ponto de permitir a quebra indiscriminada do sigilo dos registros, com informações de foro íntimo dos usuários, tão somente pelo fato de terem compartilhado determinado vídeo que, depois se soube, era falso”[9].

No âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi lançado o Painel de Checagem de Fake News. Uma das campanhas tratou-se da “#FakeNewsNão” que transmitiu ao público textos e vídeos que explicam pontos sobre os danos provocados por informações falsas, de maneira a auxiliar a população sobre como identificar publicações de caráter suspeito.

Ao Poder Judiciário caberia idealmente a atuação nos limites e balizas estabelecidos pela opção legislativa adotada. Em qualquer situação, a Constituição Federal de 1988 assegura a todos os cidadãos o direito de livre de expressão, de maneira que esta não sofrerá limitação ou controle nos casos em que não houver violação de outros direitos fundamentais. Direito essencial num regime democrático, não se trata por óbvio de garantia constitucional absoluta.

Embora seja correto que a “liberdade de expressão não é liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e preconceituosos!”[10] e que “fora das Artes, a invenção e divulgação de fatos não tem proteção constitucional”[11], deixar ao Poder Judiciário, ainda mais mediante atuação de ofício, a caracterização subjetiva do que constitui um discurso mentiroso, e qual a sua punição, pode ser perigoso. Uma pessoa que publica nas redes sociais que foi à academia sem ter ido, ou que leu tantos livros sem tê-lo feito é uma mentirosa, e divulgou notícias que sabe serem falsas. Daí não decorre, porém, que deva ser punida judicialmente.

A definição do que é desinformação, ou fake news, é tão complexa que nem o Digital Services Act nem o PL 2630/2020 ousaram adotá-la, ao menos até o momento. Que o Judiciário o faça sem maiores balizamentos, numa criação judicial do direito, é fator de enorme insegurança jurídica e causa de preocupações, a nosso ver, para os limites da livre expressão. Ademais, esse ativismo judicial expande em demasia os poderes político-normativos dos juízes e tribunais em face dos demais poderes constituídos[12], gerando desequilíbrio e tensão institucional.

É inegável que em tais casos, defronte ao rompimento de princípios de civilidade, o Poder Judiciário, quando provocado, suporta adversidades e obstáculos no para julgar demandas relacionadas às fake news, como a referida ausência de delimitação de conceito[13]. O próprio ministro Luís Roberto Barroso afirmou que o Poder Judiciário não possui condição de ser protagonista no enfrentamento das fake news por diversos motivos e que o primeiro problema é atinente à própria qualificação do que sejam as fake news[14].

Ao combater eventuais “notícias fraudulentas e a desinformação danosas à democracia”[15], no entanto, há que se cuidar para não erodir um de seus fundamentos, a própria liberdade de expressão. Uma das possíveis ameaças é a chamada censura colateral, em que um governo, sem que haja uma legislação específica, pressiona empresas privadas nos bastidores, por meio de soft power, a regular o discurso de terceiros e impor restrições à infraestrutura do discurso e da expressão, situação bem documentada por Jack Balkin nos Estados Unidos[16]. Foi exatamente o caso conhecido como Twitter Files, em que agentes do governo pressionaram a atuaram em conjunto com a plataforma para suprimir determinadas informações relevantes para a eleição presidencial americana de 2020[17].

Ações comunicativas, via de regra, são menos perigosas que ações não comunicativas. O grito de fogo no teatro, exemplo clássico da expressão não protegida, é comunicação que não invoca reflexão, mas induz tomada de ação imediata, sob a qual uma multidão, em estado de excitação, tende a reagir abruptamente. Quando a comunicação é reflexiva e não representa infração direta à lei, contudo, ela deve ser tolerada[18].

Seria o caso de postagens como a do professor Marcos Cintra, que aventou possibilidade de fraude nas urnas eletrônicas e teve sua conta no antigo Twitter suspensa[19]. Um intelectual[20], numa ação comunicativa passiva, aventando possibilidades e hipóteses, ainda que de forma equivocada, e sem convocar para uma ação ilegal, não deveria simplesmente ter seu discurso censurado. Note-se que a expressão, enquanto reflexiva, não está submetida nem a consensos científicos e nem mesmo ao dever de verdade perante os fatos[21].

Vale notar, ainda, que o STF reconhece há bastante tempo a “atipicidade de reclamações, censuras ou críticas, ainda que veementes, à atuação funcional do funcionário”[22], já que os agentes públicos estão mais sujeitos ao escrutínio dos cidadãos.

Exortar maior prudência do Judiciário não implica defender a inexistência de perigos à democracia e as ameaças que as próprias plataformas digitais podem impor às eleições e ao livre debate de ideias. Um exemplo deste último risco é o chamado efeito de manipulação das ferramentas de busca (Search Engine Manipulation Effect), que permite a tais ferramentas induzir em eleitores visões favoráveis ou desfavoráveis a determinados candidatos e mesmo a comparecer ou não a pleitos eleitorais. Pelos cálculos de Epstein e Robertson, autores do estudo, é possível influenciar ao menos 20% dos eleitores em determinado pleito com o emprego dessas técnicas[23].

Exigir essa prudência também não significa igualar pura e simplesmente o regime de liberdade de expressão brasileiro àquele dos Estados Unidos, que historicamente é o que mais protege esse direito[24].

O ideal é uma visão mais equilibrada e prudente por parte do Judiciário em casos de regulação do discurso e da expressão, ainda mais quando quem se manifesta é um indivíduo num modo de comunicação meramente reflexivo e analítico. Esse é o caminho para se preservar os pilares da democracia sem erodir a liberdade de expressão, um dos fundamentos que lhe dão sustento.

[1] A liberdade aqui continua existindo, mas deve ser compreendida como liberdade de todo pecado, ou seja, liberdade na verdade ou dentro dos limites da verdade. Vide mais em: Machado, Jónatas. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 14-20.

[2] Wolfson, Nicholas. Hate Speech, Sex Speech, Free Speech. Wesport: Praeger, 1997.

[3] Gillespie, Tallerton. Custodiando f the Internet. Platforms, Content Moderation and the Hidden Decisions that Shape Social Media. New Haven: Yale University Press, 2018, pp. 38-41.

[4] Wu, Tim. Is the Fisrt Amendment Obsolete? Michigan Law Review, vol. 117, issue 3, 2017.

[5] Ver em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754371407. Acesso em: 12/02/2024

[6] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário Eleitoral nº 0603975-98, Classe 11550, Ministro: Luis Felipe Salomão, 28 de outubro de 2021.

[7] Ver em: https://www.poder360.com.br/justica/tse-anuncia-criacao-de-grupo-de-trabalho-com-ministerio-da-justica/. Acesso em 06/02/2024.

[8] TSE Precisa Conter Tentações Autoritárias. Editorial. Ver em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/02/tse-precisa-conter-tentacoes-censorias.shtml Acesso em 14/02/2024.

[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1859665/SC, Relator: Luís Felipe Salomão.

[10] Ver em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=490970. Acesso: 12/02/2024.

[11] Ministra Nancy Andrighi, Agravo em Recurso Especial nº 2326818 – DF.

[12] Campos, Carlos Alexandre de Azevedo. Moreira Alves v. Gilmar Mendes: A evolução das dimensões metodológica e processual do Ativismo Judicial do Supremo Tribunal Federal. (in) Fellet, André Luiz Fernandes; Paula, Daniel Giotti de; Novelino, Marcelo (Org.). As novas faces do ativismo judicial. Salvador: Jus Podivm, 2011.

[13] Bocayuva, Marcela Carvalho O que é desinformação no judiciário brasileiro? [livro eletrônico]: uma análise da jurisprudência dos tribunais superiores sobre as fake news / Marcela Carvalho Bocayuva, Nathalia Vince Esgalha Fernandes, Gustavo Silveira Borges; coordenação Luciane Cardoso Barzotto… [et al.]. — Brasília, DF: AMB, 2023, p. 49.

[14] FOLHA DE SÃO PAULO, Brasília, 27 de julho de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/07/judiciario-nao-tem-condicao-de-ser-protagonista-no-combate-as-fake-news-diz-barroso.shtml. Acesso em: 12/02/2024.

[15] Toffoli, José Antonio Dias. Fake News, Desinformação e Liberdade de Expressão. (in)  Abboud, Georges; Nery Jr., Nelson; Campos, Ricardo (org.) Fake News e Regulação. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2020, p. 27.

[16] Balkin, Jack. Free Speech in the Algorithmic Society: Big Data, Private Governance, and New School Speech Regulation. UC Davis Law Review, vo. 51, p. 1149.

[17] De Caria, Riccardo. A Case for Ideological Coherence in Regulating Online Speech: Going Back to Basics to Manage the (not so) Difficult Interplay Between Free Speech and Economic Freedoms. International Review of Law, Computers & Technology, 2023.

[18] Martins neto, João dos Passos. Fundamentos da Liberdade de Expressão. Florianópolis: Insular, 2008, p. 97.

[19] Ver em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/11/suspensoes-de-perfis-avancam-no-tse-e-stf-sem-definicao-de-limites-e-criterios-na-lei.shtml Acssso em 14/02/2024.

[20] Utilizamos aqui a definição de intelectual dada por Jaques Le Goff, no sentido de intelectual como pessoa de ofício, ou seja, aquele que dedica a vida para estudar e dar aulas. Le Goff, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 13ª ed., 2013, p. 9.

[21] Canotilho, J.J. Gomes; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I Coimbra: Coimbra Editora, 4ª ed., 2014, p. 572.

[22] Inq 3.215, rel. min. Dias Toffoli, j. 4-4-2013, P, DJE de 25-9-2013; HC 83.233, rel. min. Nelson Jobim, j. 4-11-2003, 2ª T, DJ de 19-3-2004.

[23] Epstein, Robert; Robertson, Ronald. The Search Engine Manipulation Effect (SEME) and its Possible Impact on the Outcomes of Elections. PNAS, vol. 112, nº 33, 2015.

[24] Sedler, Robert. Um Ensaio sobre a Liberdade de Expressão: Os Estados Unidos versus o Resto do Mundo. Sampaoio, José Adércio Leite (org.). Liberdade de Expressão no Século XXI, 2016, p. 87-98.