Planejar, planejar e planejar: o futuro da nova Lei de Licitações

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“Se você fracassar em planejar, planeja-se para o fracasso”. Essa frase é repetida como um mantra no premiado filme King Richard, que trata da história das tenistas e irmãs Serena e Venus Williams e de sua preparação feita por seu pai, Richard.

Muito embora pareça uma frase encontrada em livros de autoajuda ou em mensagens clichês de coaches dos tempos modernos, é certo que este ponto, sobre a necessidade de planejamento, claramente foi um dos pilares que o legislador ergueu na nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021).

De início, deve-se sublinhar que o dever de planejamento na Administração Pública não surge com a Lei 14.133/2021, embora seja por ela reforçado. Veja que, desde antes da Constituição de 1988, há uma determinação de que o exercício da função administrativa na órbita federal seja feito de forma planejada. Toma-se como exemplo o Decreto-Lei 200, de 1967, que já previa o planejamento como princípio fundamental da Administração Pública Federal (artigo 6º, inciso I).

Apesar de o dever de planejamento na função pública não ser novidadeiro, quando se observam as frequentes falhas em procedimentos licitatórios e contratações públicas (superfaturamento, obras inacabadas, objetos que não atendem as necessidades do Poder Público, rescisões contratuais antes do seu termo final, falta de orçamento, baixa qualidade dos bens e serviços contratados, etc), podem ser identificados dois grandes gargalos: a ausência ou deficiência do planejamento e/ou da fiscalização do contrato (quanto a este segundo ponto, reservaremos um novo artigo para abordar a matéria de forma apropriada).

Um exemplo real ilustra melhor a questão: certo município havia gasto milhões de reais em uma contratação para um avançado equipamento médico. Um ano após a aquisição, durante uma fiscalização in loco feita pelo Tribunal de Contas do Estado, apurou-se que o equipamento estava abandonado em uma sala sem qualquer tipo de uso.

Ao serem questionados sobre a situação, os agentes públicos municipais esclareceram que quando foram utilizar a máquina, notaram que o aparelho fazia uma vibração intensa que começava a ruir as estruturas do prédio. Ao pesquisarem sobre aquele cenário (o que somente se deu após detectarem o problema), localizaram a informação de que era necessário um suporte especial para o funcionamento daquele equipamento médico. Ocorre que não havia mais recursos orçamentários para a compra do referido suporte. Como consequência, o aparelho nunca chegou a ser utilizado e não havia previsão de quando o seria.

Esse singelo exemplo, cuja gênese se repete aos montes pelas administrações públicas do Brasil, é resultado da ausência de um planejamento mínimo, que deveria ter averiguado pelo menos os seguintes questionamentos: são necessárias contratações correlatas para a aquisição daquele equipamento? Quais as especificações e requisitos para o seu funcionamento adequado?

Ainda hoje, infelizmente, diversos gestores públicos atuam de maneira amadora, agindo de forma casuísta, somente após o problema já ter ocorrido, visando a resolver exclusivamente aquela demanda imediata, sem qualquer tipo de gestão de risco ou um planejamento a médio e longo prazo.

De modo a alterar essa realidade, ao menos por meio da exigência normativa, em diversas passagens da nova Lei de Licitações há a preocupação com a estruturação de um planejamento adequado. Isso pode ser notado já na previsão do artigo 5º, que expressamente indica o planejamento como um dos princípios a serem atendidos nas contratações públicas. De igual forma, a fase preparatória, associada ao planejamento, consta como primeira etapa da licitação, conforme contido no artigo 17, inciso I.

Ademais, a nova lei trata de dois processos de planejamento: um macro e outro micro. O macro planejamento trazido pela lei pode ser enxergado no conjunto de contratações a ser efetivado pelo ente público, não se referindo individualmente a cada objeto contratual. É nessa toada que aparece a previsão do Plano de Contratações Anual (PCA), prescrito no artigo 12, inciso VII, da Lei 14.133/2021 (ainda que sua utilização seja facultativa aos entes). Conforme definição trazida no artigo 2º, inciso V, do Decreto 10.947/2022 (que regulamenta a matéria no âmbito da União), o PCA é o documento que consolida as demandas que o órgão ou a entidade planeja contratar no exercício subsequente ao de sua elaboração.

O PCA permite, em tese, que se promova a racionalização das contratações das unidades administrativas, permitindo contratações centralizadas e compartilhadas, a fim de obter economia de escala, padronização de produtos e serviços e redução de custos processuais. Outrossim, subsidia a elaboração das leis orçamentárias, evita o fracionamento de despesas e sinaliza intenções ao mercado fornecedor, de forma a aumentar o diálogo potencial com o mercado e incrementar a competitividade (artigo 5º do Decreto 10.947/2022).

Essa estruturação macro do planejamento acaba sendo reproduzida nas regulamentações feitas para permitir a aplicação da nova lei. Nesse sentido, cita-se a Portaria Seges/ME 8.678, de 19 de julho de 2022, que traz a figura do Plano Diretor de Logística Sustentável, que inclusive orientará a elaboração do PCA. É dizer, trata-se de uma outra exigência de planejamento macro, voltada ao desenvolvimento sustentável, a ser elaborada antes mesmo do Plano de Contratações Anual.

Na mesma toada, o artigo 11, parágrafo único, da novel lei dispõe sobre a necessidade de mecanismos de governança que, dentre outros objetivos, assegurem o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias.

Ao lado do aspecto macro, tem-se também o micro planejamento, referente a cada licitação ou contratação individualizada. Aqui, exige-se uma série de etapas internas antes da publicação do edital de licitação ou da realização do contrato nas hipóteses de contratação direta.

Podem ser indicadas como etapas desse micro planejamento:

A exigência do processo se iniciar com o Documento de Formalização da Demanda (artigo 12, inciso VII; artigo 72, inciso I);
A elaboração dos Estudos Técnicos Preliminares (ETP) (artigo 6º, inciso XX; artigo 18; inciso I e §§1º a 3º);
Dentro do ETP, a realização da pesquisa de preços (artigo 23; artigo 72, inciso II);
A formalização do Termo de Referência (TR), Projeto Básico, Projeto Executivo ou Anteprojeto (artigo 6º, incisos XXIII, XXIV, XXV e XXVI; artigo 18, inciso II; artigo 40, §1º; artigo 72, inciso I);
A gestão de riscos durante todo o procedimento de contratação pública (artigo 11, parágrafo único; artigo 72, inciso I; artigo 117, §3º; artigo 169);
A criação de eventual matriz de riscos, a depender do objeto contratual (artigo 6º, inciso XXVII; artigo 22, §2º; artigo 103);
A utilização de minutas-padronizadas para a criação dos editais e demais documentos (artigo 19, inciso IV; artigo 25, §1º); e
O envio do processo à assessoria jurídica para que seja feito o necessário parecer prévio (artigo 53; artigo 72, inciso III).

Dentre esses documentos e etapas, talvez o que mereça maior atenção por parte do gestor seja o ETP. Primeiramente, em razão desse instrumento ser um total desconhecido de grande parte das municipalidades, que não o elaboravam antes da Lei 14.133/2021 (diferentemente do Poder Público Federal, que já lidava previamente com o ETP, conforme exigido, e.g., pela Instrução Normativa SEGES/MPDG 5, de 2017).

Além disso, é no ETP que se identificará o problema a ser resolvido e a sua melhor solução para a Administração. Ou seja, é a partir desse binômio “problema-solução” que todo o restante da contratação será conduzido. Havendo falha nesse termo inicial, todas as demais etapas restarão prejudicadas de alguma forma, pois partem de um pressuposto falho ou deficiente. Um ETP que não analisa a vantajosidade de um serviço de outsourcing de impressoras ao invés da aquisição desse maquinário, por exemplo, conduzirá a uma contratação ineficiente, ainda que todas as demais etapas sejam realizadas de acordo com as normas jurídicas.

Soma-se ainda que será o ETP o documento que possivelmente demandará mais esforço na sua elaboração, exigindo mais recursos humanos e tempo despendido, o que reclamará do gestor uma avaliação sobre a sua organização interna e alocação de recursos e pessoal.

Por fim, é a partir do ETP que se localizará parte significava dos elementos necessários à construção do Termo de Referência, da minuta do edital e do contrato. Assim, um ETP bem estruturado facilitará a devida elaboração dos demais documentos preparatórios da contratação pública.

Um contraponto deve ser feito ao que já foi dito. Embora o planejamento seja fundamental para o sucesso das contratações públicas, e nesse ponto o legislador parece ter acertado ao ter estruturado todo um conjunto normativo ao redor dessa questão, o excesso de requisitos para todo e qualquer objeto parece ser um equívoco, que vai na contramão da eficiência administrativa.

De fato, a exigência de elaboração minuciosa do ETP e do TR, com todos os requisitos exigidos pela Lei 14.133/2021, mostra-se exagerada quando se pensa em objetos de menor complexidade e/ou valor. O legislador não soube diferenciar o grau de planejamento exigido para uma grande obra de engenharia em relação às exigências de simples aquisição de material de escritório, por exemplo.

De qualquer modo, sem prejuízo das críticas que se possa direcionar ao modelo mais “burocrático” criado pelo legislador, o dever de planejamento resta inafastável. Os eventuais balanceamentos sobre o aprofundamento dessa fase decorrerá da própria complexidade de cada objeto concretamente considerado. Assim, sem se excluir qualquer etapa preparatória ou os requisitos necessários em cada documento, caberá ao gestor, caso a caso, desenvolver de forma mais ou menos detalhada cada levantamento exigido no planejamento.

Em síntese, para que não se planeje o fracasso, o futuro das contratações públicas depende do gestor público compreender que esse novo modelo de licitações reforça uma exigência antiga do setor público: planejar, planejar e planejar.