A relação de forças entre os poderes Legislativo e Executivo no Brasil tem mudado significativamente nos últimos anos. Durante o período que vai do governo FHC até o primeiro mandato do governo Dilma, o Executivo teve a predominância na agenda legislativa, exercida com base em dois pilares de sustentação – o controle sobre a liberação de emendas e a distribuição de cargos do Executivo. Durante o governo Bolsonaro, notou-se a consolidação dessa crescente no protagonismo do Poder Legislativo.
Com um sistema multipartidário e proporcional, a formação de maioria no Legislativo é essencial para o sucesso do governo. Desta perspectiva, ao final da década de 1990, o cientista político Sérgio Abranches cunhou o termo “presidencialismo de coalizão” para definir essa necessidade de formação de maioria pelo presidente eleito que, imperiosamente, precisa negociar recursos e cargos com os demais partidos em busca da construção de uma base sólida de governo.
Muito tem se falado sobre esse mecanismo institucional estar em decadência, descrença evidenciada até mesmo em declaração dada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), em 2022: “devemos sair do governo de coalizão para um governo de gestão dupla com um Congresso responsável pelo que vota. Não se tem responsabilidade no que se vota nesse sistema atual, é duro dizer isso”.[1]
Essa afirmação vem de um cenário pós-pandemia, onde o Congresso Nacional teve um ativismo acentuado na proposição de diversas medidas, tanto sociais como sanitárias. Mas, esse sentimento não foi construído da noite para o dia, mas sim com o acúmulo de várias alterações na lógica da relação política. Aqui, destacamos especialmente as mudanças na tramitação das medidas provisórias (MPs), dificultando a dinâmica, os prazos e o custo político, para o poder Executivo fazer as alterações legais necessárias para uma rápida implementação de suas políticas públicas.
A Emenda Constitucional 32/2001 alterou significativamente as regras de tramitação das medidas provisórias, como, por exemplo, a mudança de regime de trancamento de pauta dos Plenários das casas legislativas. Além disso, a criação de uma comissão especial bicameral de análise do mérito das propostas, que concentrou poder na mão de poucos parlamentares e a vedação à reedição de MPs que tenham sido rejeitadas ou perdido eficácia na mesma sessão legislativa transferiu um significativo poder de agenda do Executivo para o Legislativo. As MPs que eram votadas a toque de caixa passaram a tramitar mais lentamente. Esse processo se intensificou ainda mais em 2023, onde existe um impasse entre Câmara e Senado sobre o rito de tramitação dessas medidas, que sofreu mudanças durante o período da pandemia.
As novas formas de tramitação das MPs deram início ao processo de deslocamento de poder do Executivo para o Legislativo, mas foram as mudanças nas formas de aprovação e empenho das emendas individuais que contribuíram de maneira mais significativa para esse processo. Assim como a possibilidade de os vetos presidenciais trancarem a pauta e irem à votação, prática não muito usual em governos passados.
Durante o governo Bolsonaro é notável a consolidação da dificuldade do Executivo em estabelecer perante o Congresso sua agenda. O Executivo, em primeiro momento, abriu mão de fazer a política intitulada de “toma lá dá cá”, deixando um vácuo de poder, que foi rapidamente transferido para Congresso, mais especificamente ao presidente da Câmara, Arthur Lira, como uma representação do Centrão.
Essa transferência de poder se deu principalmente pela criação, em 2020, da emenda de relator geral da Lei Orçamentária Anual (LOA), a RP9, que concedeu ao relator geral do orçamento o poder de adicionar emendas que deveriam ser priorizadas pelo Executivo. Essas emendas foram amplamente criticadas, especialmente pela falta de rastreabilidade e transparência na distribuição dos recursos. Recentemente essas dotações foram consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Esse processo das emendas de relator geral foi uma espécie de evolução do orçamento impositivo, aprovado em 2015, que impossibilitou o Executivo de alterar as designações orçamentárias individuais definidas por deputados e senadores.
O montante inédito de emendas individuais e de bancada pagos em 2021 e 2022, turbinaram os candidatos agraciados com as maiores quantias pagas, definidas pelo relator do orçamento, indicado pelo Centrão. Com auxílio da proporcionalidade nas eleições para a Câmara, esses candidatos se transformaram em puxadores de voto, e como os mais próximos do então presidente da Câmara, Arthur Lira, foram beneficiados com valores maiores, se elegeram e trouxeram junto uma enorme bancada, aumentando o poder desse grupo em 2023 e deixando pouca margem de negociação para o novo governo.
Esse ciclo, em junção ao sistema proporcional, é de difícil superação já que os que têm o poder para mudanças desse status são os que se beneficiam dele. Poucas saídas restam ao governo e a que parece a mais efetiva não seria de curto prazo – além da continuidade do partido na cadeira presidencial no Executivo, eleger uma bancada de deputados federais em número significativo para enfrentar o desequilíbrio de poder estabelecido. Para isso o governo depende de ótimos números na economia e em popularidade.
As eleições municipais de 2024 servirão de bom termômetro para identificar se o atual governo conquistará o aumento de prefeituras para os partidos aliados ao governo e a diminuição das prefeituras com partidos de oposição. Além disso, valerá observar a dinâmica de negociação para a próxima eleição de presidentes das casas legislativas.
Nos próximos três anos deste governo, caberá ao Executivo qualificar e revigorar sua capacidade de negociação com o Congresso Nacional dia a dia, além de sensibilidade redobrada do presidente Lula para momentos que demandam sua atenção direta. Acompanhando esses movimentos, virão perspectivas mais claras sobre a pergunta que há pouco tem se repetido aqui e ali: ainda faz sentido falar em presidencialismo de coalizão no Brasil?
[1] Para Lira, é preciso sair do presidencialismo de coalizão e ir para um governo de gestão dupla. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/864049-para-lira-e-preciso-sair-do-presidencialismo-de-coalizao-e-ir-para-um-governo-de-gestao-dupla/