‘Perplexocracia’ e a inconstitucionalidade da PEC 8/21

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Recentemente o professor Miguel Godoy escreveu neste JOTA sobre a necessidade de o “Supremo se emendar”, ou será emendado. Observamos que o diálogo temático recomenda outras palavras, outros olhares e novas proposições, especialmente diante da chapada inconstitucionalidade da PEC 8/21, e do equívoco dos fundamentos presentes desde sua exposição de motivos, fundada nos professores Oscar Vilhena e Diego Werneck. 

Quando o ministro Victor Nunes Leal realizou discurso de despedida do ministro Carlos Medeiros Silva, deixou marcada uma reflexão enigmática que se torna atual. Disse: “O Supremo Tribunal Federal é uma janela por onde a nação vigia o Estado como um todo. Por essa mesma janela é que nós, juízes, observamos a sociedade e o mundo em torno de nós”. A janela dos professores Miguel, Oscar e Diego parece um pouco embaçada, recomendando outros olhares. 

Realizamos aqui algumas breves reflexões iniciais; começamos dizendo que a PEC 8/2021 é curiosa por vários motivos. Ela propõe alterar, entre outros, os arts. 93, 97 e 125 da Constituição Federal para o suposto efeito de limitar a atuação monocrática do STF. A proposta também é curiosa porque fundamenta sua exposição de motivos na concepção “doutrinária” de dois professores que influenciaram a escrita política sobre “Ministrocracia” e “Supremocracia”, respectivamente os professores Diego Werneck e Oscar Vilhena Vieira.

O primeiro, a despeito de artigo acadêmico de 2018 sobre o tema[1], reduziu a complexidade conceitual na recente entrevista que concedeu à BBC: “[alegando] diagnóstico de um tribunal em que ministros individuais tem variadas maneiras de afetar o mundo fora do tribunal, exercer, portanto, o poder que seria do tribunal, mas individualmente, sem controle do colegiado, às vezes tomando decisões sem apoio da maioria da corte”. (Entrevista concedida a Mariana Schreiber, em 24 de novembro de 2023).

O segundo, também a despeito de conhecido texto acadêmico[2], igualmente reduziu a complexidade em artigo de opinião intitulado “Por que me preocupo com a autoridade do Supremo Tribunal Federal”, quando mencionou: “Tenho alertado, desde meu texto sobre a supremocracia, que é de 2008, para o problema da erosão da colegialidade no âmbito do Supremo e para a correlata exacerbação das individualidades, pela qual as atribuições do Supremo passaram a ser absorvidas pelos seus membros em atuação individual”. E a reflexão dos dois professores nem mesmo é abrangente, como deveria ter sido, ao menos no que se relaciona aos momentos de discussão mais recente. 

Parecem ter esquecido de discutir, de saída, a origem e a gênese do art. 97 da Constituição de 1988, que remonta ao rico e complexo momento de nossa história no qual foi inserido o art. 179 na Constituição de 1934, que atraiu diversos debates sobre o que se chamou de “erro norte-americano” no caso do judicial review (clássico problema do quórum), e para os quais se remete o leitor a pelo menos, entre tantos outros, cinco textos fundamentais (João Mangabeira, Cândido Motta Filho, Gilmar Mendes, José Levi Mello Júnior e Marianna Montebello Willeman)[3].

Apenas a título de constatação do atraso dos “supremocratas” e dos “ministrocratas”, fiquemos com o mencionado texto do antigo professor do Largo São Francisco e falecido ministro do STF, Cândido Motta Filho (“O Conteúdo Político das Constituições”), quando registra, já em 1950 e, dentro da temática, pois é o elo de transição para ele mencionar o antigo art. 179 da CF/34, citando a experiência europeia do pós-guerra, notadamente a italiana desde o livro do professor Antônio Amorth (“Corso di diritto costiruzionale comparato”), dizendo que: “A Suprema Corte, nessa função de interpretar a lei suprema, impediria que ela fosse uma resistência insuperável aos novos reclamos da existência constitucional e, desse modo, realizaria uma atividade semelhante à de poder constituinte” (p. 235).

Considerando o cenário, o fenômeno estaria em disputa há quase 90 anos, com diversos textos de reflexões constituintes ignorados, textos centrais omitidos, e problemas políticos reduzidos ao mais ligeiro e apressado signo da redução simplificadora. Isso para falar de um primeiro momento, pois enquanto o professor Oscar Vilhena prefere ficar preso na anedota sobre dom Pedro II ter cogitado transferir o poder moderador “para uma Corte Suprema, como a de Washington”, Diego Werneck usa dados controversos sobre decisões liminares para dar a volta na própria cauda e concluir com o dedo exatamente apontado para (e de onde) ele partiu.

Já o professor Miguel Godoy parece romancear a temática sobre “as 11 ilhas”, o que parece exagerado do ponto de vista dos fatos e do efetivo papel político da corte, que precisa ser esclarecido pelo autor para a ancoragem de suas observações, ou seja, para efeito de melhor compressão sobre como uma Proposta de Emenda cavilosamente inconstitucional pode ser chamada de viável para advertir o Supremo em termos tal peremptórios (“ou se emenda ou será emendado”). 

Além disso, nenhum dos professores e seus referenciais desce aos elementos que parecem importar, de fato, quanto ao tema da “monocratização” dos tribunais, em geral, e do Supremo Tribunal Federal, em particular. Ficam na espuma, assim como os que procuraram se manifestar até então, não descendo às raízes históricas e nem aos relevantes debates travados no STF desde 1966, chegando aqui também com quase 50 anos de atraso e, o que é pior, com pretensão de expor um problema a partir de sua sombra, não dos elementos centrais desde a sua origem.

É por isso que precisamos resgatar e jogar novas luzes nas reflexões a respeito das origens da “monocratização” do STF, sem perder de vista o fato de que foi exatamente a possibilidade (ou o medo) de muitas mudanças, aliado ao almejado fortalecimento do colegiado, que fizeram com que John Marshall implementasse na Suprema Corte americana, em 1801, o modelo decisório “per curiam”, em substituição ao modelo “seriatim”[4].

Pois, claro, um tribunal que não aparentasse ser uma “instituição”, jamais viria a ser respeitado, quer pelos demais ramos do poder, quer pelos jurisdicionados, especialmente quando na maioria das vezes estará em jogo, perante a corte, um alto grau de politização (real ou aparente), sendo a política a sua mais notável commodity.

Retornemos a uma importante tarde histórica de esquecida sessão do STF quando a corte realizou o julgamento do RE 57.917 (relatoria do ministro Victor Nunes, de 10 de fevereiro de 1966), julgamento este que congregou interessantes reflexões dos ministros Nunes, Prado Kelly, Luís Gallotti, Carlos Medeiros, Gonçalves de Oliveira, Hermes Lima, Vilas Boas, Evandro Lins e Pedro Chaves sobre o tema da “monocratização do Supremo”.

É que estava em jogo a interpretação da modificação implementada pela Emenda Constitucional 16/1965, na parte em que se suprimia recurso para o STF contra decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST), exceto se houvesse violação à Constituição Federal, ou seja, existentes e problemáticos, os vários recursos já interpostos e distribuídos aos ministros com base na anterior redação do art. 122, § 19, da CF de 1946. Questionou-se: que fazer com aqueles recursos já interpostos?

Foi quando se sugeriu que os ministros fossem autorizados a negar seguimento monocraticamente, sem a necessidade de levar o caso ao plenário, com base no posicionamento do ministro Victor Nunes, para que os ministros pudessem “declarar prejudicado o recurso, ou negar-lhe seguimento, com a ressalva do agravo regimental, se a parte não se conformar com o despacho”.

Com a proposta, o ministro Gallotti pediu vista dos autos, enquanto o ministro Prado Kelly suscitou “Questão de Ordem”, observando que a Emenda Constitucional estabelecia, para o caso, a competência do colegiado, e não dos ministros isoladamente, ao que o ministro Victor Nunes o interrompeu dizendo que contra o despacho monocrático caberia o recurso ao colegiado.

É a partir deste grupo de intenções que se desenvolveu a longa discussão que se seguiu. Sob a perspectiva do ministro Victor Nunes, essa temática remontaria à anterior discussão que foi travada no Supremo Tribunal Federal, por ocasião do questionamento sobre a aplicação de entendimento monocrático que determinasse o arquivamento de processo ou a negativa de seguimento, com base em Súmula de sua jurisprudência dominante.

Para o ministro Victor Nunes, se a parte se conformasse com o entendimento monocrático, deixando de impugnar a decisão para sua reanálise pelo colegiado, a discussão estaria encerrada. Contra esse ponto de vista, entretanto, o ministro Prado Kelly opõe duas ponderações: uma de princípio, e outra de ordem prática, segundo alegou.

No primeiro caso, o surgimento de uma Emenda Constitucional posterior à discussão sobre a súmula, e no segundo caso o aspecto relacionado à dificuldade dos advogados que eventualmente poderiam perder o prazo ou não conseguissem questionar de maneira adequada a decisão monocrática impugnada.

O diálogo que se seguiu é dos mais interessantes, e vale recordar o ministro Victor Nunes, que respondeu dizendo que, se prevalecesse o ponto de vista do ministro Prado Kelly, o STF acabaria “demolindo a Súmula”. Perceba-se que era justamente a metamorfose da Corte Suprema que estava em plena realização, não se tratando “apenas” de “monocratização” ou de “erosão” da colegialidade, mas da própria noção da função da corte e do seu famoso “método”, que é a chave interpretativa da temática da súmula, conforme seu criador, o mesmo ministro Victor Nunes Leal[5].

Também são chamados ao centro de gravidade do debate o fato de que o STF já poderia se valer de uma atuação monocrática, devido à antiga “emenda Mário Guimarães” para arquivar Agravos de Instrumento, mas nesse caso por concessão legislativa, e sem que os ministros perdessem de vista a temática da expressa previsão (ou existência constitucional das turmas e do pleno).

Como ponto de vista enigmático, os ministros utilizaram o exemplo da atuação dos presidentes dos Tribunais de Justiça que exercem o primeiro juízo de admissibilidade nos Recursos Extraordinários, quando também surge a hipótese de agravo contra a decisão para “destrancar” o recurso, e viabilizar sua análise (segundo juízo de admissibilidade) pelo próprio STF. Surgiu também a discussão sobre o agravo ser um recurso previsto em lei, mas não na Constituição.

Também testemunhamos a perspectiva complementar: o fundamento que foi suscitado pelo ministro Gonçalves de Oliveira, vale dizer, permitir que os ministros atuassem monocraticamente serviria para “evitar a perda de tempo”, pois o STF deveria reservar energia para àquilo que, de fato, fosse relevante. Conforme o ministro Evandro Lins, agindo monocraticamente os ministros estariam atuando como um representante: “o relator julga como um delegado do tribunal”.

Nestas breves linhas, dito de outro modo, ficam estabelecidas algumas perplexidades sobre a referida PEC, quais sejam, quanto ao texto legislativo, a indagação sobre caber a um outro Poder (Legislativo) se imiscuir no caminho de formação interna de outro (Judiciário) para confirmação ou alteração de sua jurisprudência através da Súmula, centro do debate da “monocratização”, que já adentra a antiga doutrina das questões políticas, além dos atos interna corporis.

A se admitir isso, obviamente, o próprio Supremo Tribunal Federal poderá também ingressar no Regimento Interno e no funcionamento minucioso intestino da atividade procedimental legislativa.

Em outro sentido complementar das perplexidades, a questão sobre a pura e simples “monocratização” que se divorcia de todo o longo debate naquela longínqua tarde de 1966, que alega ser mera questão de concentração de poderes em um único ministro, o que levaria o próprio Supremo a poder ingressar em atos dos outros Poderes nos quais também existe certa concentração decisória, como na deflagração inicial dos pedidos de início de processo por crime de responsabilidade, tornando-a colegiada, ou ingressando no poder de agenda das monocráticas decisões das presidências da Mesa da Câmara e do Senado, ou no poder de veto ou sanção legislativa.

Uma questão adicional de perplexidade: os autores mencionados no início (Diego Werneck e Oscar Vilhena) criaram nomes “sensuais” para suas observações (“Ministrocracia”, “Supremocracia”), que ajudam a vender e a replicar (como “memes”), cunhando neologismos que são repetidos pelos foros e pelas salas de aula, mas fizeram isso para facilitar a discussão do direito constitucional por meio de “memes” ou apenas para rebaixar a discussão mesmo? Que seria a criação de outros “memes sensuais”, como “Pachecocracia”? “Eduardocracia”? “Bolsonarocracia”? “Parlamentocracia”? “Senadocracia”? “Perplexocracia”?

Contudo, se o debate se pretende sério, que se comece discutindo o caráter de corte constitucional da Suprema Corte (são coisas diferentes?), o sentido de súmula da jurisprudência (debate Victor Nunes v. Prado Kelly), o dogma do judicial review e de um suposto “erro norte-americano” (caráter relativo e responsivo da cláusula de reserva de plenário) com o atualizado papel do Senado no controle de constitucionalidade, e, o que parece ser mais grave: os atos interna corporis e o dogma da doutrina das questões políticas. 

Fora desse quadrante, sobra muita espuma e discussão sobre estética constitucional de “memes” de baixa qualidade acadêmica, além de advertências que se usa até mesmo com adolescentes, jamais com instituições constitucionais.

[1] ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministrocracia: o Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Novos Estudos CEBRAP, vol. 37, n. 01, pp. 13-32, 2018.

[2] VIEIRA, Oscar Vilhena., “Supremocracia”. Revista Direito GV, 4, 2: 441-464, 2008.

[3] Cfr. MANGABEIRA, João. Em torno da Constituição. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1934; MOTTA FILHO, Cândido. O Conteúdo Político das Constituições. Rio de Janeiro: Borsoi, 1950; MENDES, Gilmar. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade, Revista de Informação Legislativa, v. 41, n. 162, 2004; MELLO JUNIOR, José Levi. Incidente de argüição de inconstitucionalidade. São Paulo: RT, 2002; e Marianna Montebello Willeman. Controle de Constitucionalidade na Constituição da República de 1934. Revista da PGRJ, (69), 2015.

[4] PÁDUA, Thiago Aguiar. Uma breve abordagem sobre os modelos de deliberação das cortes colegiadas judiciais: Per Curiam vs. Seriatim. Revista Jurídica da OAB/DF, ano 2, n. 5, março/2015.

[5] LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro da súmula do STF. Revista de Direito Administrativo, n 145, 1981.