Pejotização: STF ultrapassou portal do inferno e não consegue retornar

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Quem acompanha os julgados do STF sobre o tema pejotização já percebeu a essa altura que a jurisprudência da nossa corte constitucional sobre o tema é antijurídica e errática. A impressão que tenho é de que a maioria dos ministros está perdida e não sabe bem o que está fazendo. É compreensível: o que começa errado só pode terminar errado.

Ao equivocadamente equiparar o processo de pejotização com terceirização (dois fenômenos jurídicos completamente distintos, pois terceirizados têm direitos trabalhistas e pejotizados não), o STF criou o seu inferno particular, do qual não consegue sair. A situação lembra muito o mito grego de Cérbero, o Cão de Três Cabeças.

Cérbero parecia uma criatura adorável, dócil e amistosa, que instilava curiosidade naqueles que se aproximavam do exótico animal. Guardava um estranho portal, que os desavisados não sabiam se tratar do inferno. Ao ultrapassar esse portal de trevas dominado pelo senhor do mundo inferior, Hades, os violadores ficavam aprisionados para todo o sempre, ameaçados pelo mesmo Cérbero, agora transformado em um monstro ferocíssimo, que poderia despedaçá-los.

Os ministros do STF acreditavam que poderiam facilmente ultrapassar o portal que distingue trabalho autônomo de trabalho subordinado e assim, em um passe de mágica, transformar a natureza cogente, de ordem pública, do Direito do Trabalho: “Que tal tornar a legislação trabalhista facultativa, não é uma boa ideia?”. Bastaria que patrão e empregado assinem um contrato civil e que o trabalhador vire uma “pessoa jurídica”. “Vamos copiar o jogo do bicho: vale o escrito!” Parecia uma coisa simples, afinal no século 19 era assim, não é mesmo?  O Direito Civil regendo as relações de trabalho. Por que não voltar ao século 19?

Ocorre que o próprio STF, nos precedentes sobre terceirização que deram origem ao malsinado Tema 725, havia por mais de uma vez feito a ressalva: em caso de fraude à relação de emprego, os trabalhadores poderiam recorrer à Justiça do Trabalho. E a Justiça do Trabalho, como sempre faz desde 1943, continuou verificando se contratos de suposta prestação de serviços por pessoa jurídica não serviam apenas como o biombo de uma relação de emprego camuflada. Em certos casos a Justiça do Trabalho reconhece o vínculo, em outros não.

Porém, o STF, inovando, decidiu que toda e qualquer decisão da Justiça do Trabalho que reconhece o vínculo de emprego de pessoas jurídicas é matéria constitucional (!) e pode ser revista pela corte constitucional, em reclamações constitucionais para apurar suposta violação aos precedentes do Tema 725.

O Supremo decidiu assim revisar provas (o que não é possível em sede de reclamação) de todo e qualquer processo trabalhista em que se invoca o art. 9º da CLT (“São nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”). Isso animou qualquer parte derrotada na Justiça do Trabalho em processo sobre a questão a recorrer diretamente ao Supremo. Os processos se avolumaram e o STF virou a maior Vara do Trabalho do Brasil, como eu previ que aconteceria, neste artigo publicado no JOTA.

O ministro Gilmar Mendes, diante deste caos, mandou levantar o número de reclamações constitucionais ajuizadas no STF contra decisões da Justiça do Trabalho e, com os dados absurdamente altos em mãos, esbravejou na imprensa contra a situação, culpando os juízes do trabalho pelo quadro dantesco, dizendo que eles desobedecem a jurisprudência do STF. Ora, ministro Gilmar Mendes, quem abriu a porta do inferno e ultrapassou sua soleira foram Vossas Excelências, ao alimentar esse exótico e monstruoso cão de três cabeças chamado Tema 725!  Se o próprio Supremo, em precedentes do Tema 725, disse que ressalvava os casos de fraude, por que não poderiam os juízes do trabalho apreciá-los, como sempre fizeram?

Mas não satisfeito com esse bloody hell, como diriam os ingleses, em alguns casos certos ministros têm entendido que sequer teria a Justiça do Trabalho competência para apreciar casos de fraude à relação de emprego, decidindo assim mandar os autos para a Justiça Comum!

Sim, caro leitor, acredite, se o senhor não tem acompanhado a jurisprudência da Excelsa Corte na matéria, é a pura verdade, por mais inverossímil que isso possa parecer: há decisões em que os ministros mandam um juiz da Justiça Estadual interpretar e aplicar os arts. 3º e 9º da CLT. Fico aqui a imaginar o pobre coitado juiz da Justiça Comum recebendo um processo como esse e pensando: “Puxa vida, a última vez que abri a CLT foi há 25 anos, quando estava na faculdade – sequer estudei direito do trabalho para o concurso da magistratura”. Houve, por acaso, alguma mudança no art. 114 da Constituição, que define a competência da Justiça do Trabalho para apreciar “as ações oriundas da relação de trabalho”? Só se foi uma “mutação constitucional” não anunciada…

Mas ainda há solução possível. Afinal, nos ensina a mitologia grega que algumas poucas deidades conseguiram sair do reino trevoso de Hades, como Hércules – e esse foi um de seus 12 trabalhos. O personagem, aliás, nos remete à metáfora do jurista Ronald Dworkin, para quem o magistrado ideal deveria ser um “Juiz Hércules”, deferente à tradição judicial, mantenedor da integridade e coerência da jurisprudência. Bastaria, assim, pedir aos ministros do STF um pouco de humildade para reconhecer o erro, dar um passo atrás e mostrar deferência à jurisprudência construída de forma sólida e coerente pela Justiça do Trabalho ao longo de 80 anos.

Mas talvez me engane nessa esperança vã. Pedir humildade aos Deuses do Olimpo já seria demasiado. Como sempre reitera o próprio presidente da corte, ele “só faz o que é certo”, nunca erra, acredita-se infalível como o papa. Cérbero continuará tendo seus dias de glória.